I.1 - Dois irmãos

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Berek acordou de súbito bem antes da alvorada. O céu ainda estava sombrio e a terra, descolorida. Suor gelado e tremores formigavam-lhe na pele. Na mente ecoavam gritos de horror e gargalhadas cruéis, que faziam a noite serena parecer apenas uma ilusão imbecil. Ele enxugou a testa molhada com o lençol a fim de apagar as imagens remanescentes do pesadelo. “É inútil”, suspirou.

Levantou-se da cama e arrastou-se à janela, andando em passos sorrateiros para não incomodar o irmão, que ressonava tranquilo enquanto dormia. Apoiou os cotovelos sobre o parapeito e pôs-se a contemplar as estepes cinzentas e silentes. Não conseguia ver muita coisa. De fato, desde sete anos atrás, quando a Lua desaparecera, raros eram os que podiam enxergar bem após o crepúsculo sem recorrer a alguma fonte de luz.

Mesmo assim, percebendo que o sono não voltaria tão cedo, Berek continuou a fitar o exterior, analisando as estranhas silhuetas a distância, buscando adivinhar se pertenciam a árvores, pedras, animais ou qualquer outro ser que estivesse a caminhar por aqueles campos desolados de madrugada. Contudo, como se não bastasse a quase completa escuridão, amenizada somente pelo fraco pisco das estrelas, uma fina névoa pairava sobre o solo. Era impossível avistar algo com clareza nessas condições. O rapaz então desviou o olhar para o firmamento e seus pontos luminosos, e ficou a ligá-los com o dedo para formar desenhos.

“Consegues ver o cisne, meu menino?”, a voz assomou vívida em seu âmago. Não a reconheceu a princípio, embora com razão a atribuísse a um passado remoto. Pois ela era bonita como o trinar do rouxinol e só podia harmonizar-se com um mundo que ainda não tinha encarado as trevas da noite para sempre sem Lua. “E o leão? Consegues vê-lo?” Berek anuiu para o devaneio. Mas ele não era capaz de ver o leão. Entre as estrelas, via flechas e a muito custo viu uma face de lobo, nada tão sofisticado quanto um leão. Nem naquela ocasião lograra vê-lo. Sim, nem naquela ocasião, e mesmo então ele anuíra. Não quisera ver o leão. Ansiara por receber o sorriso dela, isso sim, a recompensa por ter conseguido ver o que ela vira no céu. Mas agora já não mais teria recompensa, e ele sabia disso. Tanto que, se naquela noite ele torcera o pescoço de várias maneiras, vasculhando a abóbada enluarada à caça do leão, do cisne, de mil ursos – da floresta inteira –, tudo para apreciar o sorriso dela, nessa noite não precisava fingir, apenas anuiu mudo e procurou nos ares tenebrosos o sorriso de sua mãe. Frívolo esforço: ele sumira havia anos, junto com a Lua. No fim sobrara nada além da memória escassa, porque a realidade, indiferente, seguira seu curso.

Berek enganava-se a si mesmo posando de ocupado, pois supunha que demoraria bastante até adormecer de novo. Mas a verdade era que não queria dormir mais, não queria retornar ao leito e ser novamente atormentado por sonhos maus. Ele só inventava pretextos para o tempo passar, até os primeiros raios de Sol finalmente despontarem no horizonte.

Uma hora após, entretanto, o garoto já lutava exaustivamente contra o sono – e não podia perder a batalha. Não desejava reviver aquelas cenas dolorosas, mas não conseguia- era muito- imensamente difícil... Pesavam-lhe os cílios, os olhos semicerravam-se, o queixo pendia frágil como se deslocado, e a cabeça escorregava lentamente... Não- podia- mais- resistir... E recobrou a consciência. Fora quase subjugado quando seu cão de caça, que dormitava sob sua cama, bocejou e espreguiçou-se.

Ao notar que o dono estava acordado, o animal também se levantou e veio a ele, à cata, esperançoso, de um afago atrás da orelha. Repousou o focinho sobre o colo do jovem, que lhe acariciou a fronte e disse:

– Obrigado, Lao. Não fosse por você, creio que minha mente já teria sucumbido ao desespero.

Em resposta o cachorro deu uma lambida distraída na mão de Berek, e este sorriu. O garoto jamais descartara a hipótese de que Lao podia compreender o que as pessoas falavam. Era agradável ter um companheiro a seu lado, já que agora um vento frio adentrava no quarto, avisando que a aurora não tardaria a raiar.

Além do Sol e da LuaWhere stories live. Discover now