III.1 - Sombra sob a luz do lustre

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De volta à loja contra a vontade, o garoto foi jogado rudemente no chão, depois de os homens terem arrancado sua capa. A surpresa nocauteara seu raciocínio, e agora o lustre justo acima de si lhe ofuscava a vista, enquanto ele assistia prostrado a seus captores destroçarem sua austera companheira de viagem. E eis que, miúdo e indefeso, Seth prendeu o fôlego à medida que o coração acelerava e as veias dilatavam. Pulsava-lhe no sangue um medo maior do que o terror que lhe injetaram Hidëo e Atröxis: pânico. Pânico nauseante. Não tinha a menor noção do que fariam com ele. Mestre Paetros prevenira-o acerca do “tratamento nada gentil” reservado aos semielfos, mas nunca entrara em detalhes; e o menino, sensato, jamais nutrira curiosidade sobre o assunto.

Encolheu-se e esquadrinhou o panorama. Percebeu que por detrás do balcão o Sr. Cahtóris encarava-o com pena e, da palidez anormal de sua pele, deduzia que estava tão assustado quanto ele próprio. Não, o garoto não podia esperar o socorro do velho. Não devia. Afinal, o negociante lhe avisara, dissera que nada poderia fazer se a dupla decidisse agir... “Mas e daí?” Desde que Marco se fora o semielfo só podia contar consigo mesmo ou com o irmão. No entanto Berek não estava ali para salvá-lo. Seth estava sozinho, e sozinho sairia da enrascada. Só desejava que o Sr. Cahtóris parasse de mirá-lo com tanta piedade. “Não estou morto ainda, não é?!”, refletiu. “Não vou morrer aqui nem agora. Não me olhe assim, droga! Não sou digno de pena nem pretendo sê-lo. Não quero sua ajuda, senhor. Não preciso dela.”

Era um semielfo, sim. E era um semielfo orgulhoso.

Uma centelha de coragem ardeu-lhe no peito e extravasou para fora. A determinação perpetrou-se em sua face e, ao contemplá-la, o comerciante ficou desconcertado. Pois mesmo após piscar várias vezes para certificar-se de que não estava imaginando coisas, ele ainda conseguia vê-las. Não saberia explicar o porquê, mas agora ele não mais arrostava vidro embaçado, não mais arrostava íris nubladas. Por um fugaz momento, pareceu-lhe que dois brilhantes medalhões de prata estavam a retribuir-lhe o olhar – e dele o Sr. Cahtóris desvencilhou-se assim que pôde.

– Por quanto tempo presumiu que manteria seu disfarce, verme? Panos não escondem o fedor de seu sangue. Qualquer um o sentiria a uma centena de quilômetros.

A voz reverberou como um gongo e atiçou a audição de Seth com a intensidade da badalada de um soberbo sino-relógio clerical. Correspondia ao sujeito com as bandagens. O outro, risonho que nem uma hiena, deixava cair os farrapos de tecido negro por entre os dedos de unhas sujas.

– Não vai se manifestar? – Cuspiu. – Bastardo impuro. Aposto que concorda com tudo o que dissemos, não é? – Gargalhadas estridentes do colega. – Ou talvez não saiba falar... Sim, geralmente os vermes não têm capacidade de fala... Apenas grunhem feito os animais que são!

Mudo, o garoto fitava os homens com um olhar penetrante, exibindo o que acreditava ser uma pose de desafio.

– Ou quem sabe... esteja com medo? É claro. Desconfio que eu tenha acertado em cheio, não é? Heh, sim, você tem medo. Tem medo que nem um cordeirinho cercado por vorazes lobos. – Aparentemente o zombador gostava de responder às perguntas que propunha e rir das piadas que lançava. “Hábitos odiosos”, concluiu Seth. – Contudo você sabia perfeitamente que a toca da matilha era perigosa e ainda assim se aventurou a nela adentrar. Receio que deva ser... PUNIDO! E tenho certeza de que aprenderá uma lição permanente e jamais tornará a pisar nesta casa, nesta cidade... NESTE MUNDO! Nada disso pertence a um verme feito você.

O menino notava que sua atitude de nada adiantava. A dupla não seria intimidada por um pirralho metido a valentão. Porém não havia estratégia alternativa; ou nenhuma que Seth enxergasse, pelo menos. Logo, se ele agora estava fadado a sofrer nas garras daqueles sujeitinhos irritantes, preferia enfrentar esse fardo com dignidade a acovardar-se.

Além do Sol e da LuaWhere stories live. Discover now