As agulhas de vento choviam de baixo para cima enquanto Seth caía. Um martírio às feridas abertas de seu rosto, que até então não o haviam incomodado. A dor durou ínfimos segundos, pois a gravidade tinha pressa em puxar o corpo para a terra. Teria quebrado-lhe alguns ossos, não fosse o terreno macio onde ela o assentou. O farfalhar da palha denunciou a descarada conveniência. Justamente no ponto em que fora obrigado a pular ou voltar, o monte fofo sob os pés dissipara as dúvidas do fugitivo.
E ali estava ele agora, naquela alameda escura que nem breu, escondida das cores vibrantes da Tiberia turística. Deserto. Tudo deserto, exceto por um trio de mariposas. Devia haver luz num canto, isso era certo. O cão sacudiu-se para arrebatar os fiapos ásperos da pelagem. O semielfo perscrutou a sombra e logo divisou um facho assustadiço. A flama vinha do leste, no entanto, e lá somente se estendiam muralha e portão fechado. “Trancado no covil até o amanhecer. Que animador...”
De repente o cachorro desatou a rosnar. Zombeteiras, as mariposas dançavam no lusco-fusco. Lao não resistiu ao desafio, e o menino foi-lhe atrás, trôpego, mas sorridente; não podia zangar-se com seu patrono, sem falar que a disposição dele era contagiante. Porém as mariposas não interromperam o baile, porque o cão não se lhes dirigiu. Embrenhou-se no burgo silencioso, labiríntico devido ao crescimento desordenado. O dono tentava acompanhá-lo, atrelado ao merecido voto de credibilidade depositado no animal. Contudo a distância entre os dois só fazia aumentar, a perna do garoto moderava-lhe a velocidade com fisgadas. E o cachorro desapareceu, o sorriso desapareceu, Seth desapareceu.
Dobrara uma esquina involuntariamente, à força de um ríspido puxão. Teria reagido à altura, dessa vez. Todavia deparou-se com Lao, de rabinho abanando e de língua salivante, e constatou estar fora de perigo. Surpreendeu-se ao ouvir um guizo familiar a tocar e ver os bigodes hirtos do Sr. Cahtóris. Surpresa maior foi notar que o velho batia-lhe continência... não, na verdade- na verdade pedia silêncio, de indicador em riste. Era difícil enxergar detalhes com clareza naquelas trevas profundas, mesmo para o semielfo que ele era. Aí o comerciante sinalizou para que o seguissem. O cachorro assentiu prontamente. Rastros de baba nos ladrilhos.
O menino relutou. Até onde sabia, fora o vendedor quem convocara a Guarda Tiberiense, a mando de Ulderik. De modo algum o censurava por isso, já que ele não se imbuíra de más intenções, apenas pusera a própria vida acima da de um cliente. Egoísmo? Talvez, embora com certeza uma decisão razoável. A polissemia da noção de piedade era administrada estranhamente pelo semielfo: o mau sentido, a piedade que repudia e humilha, aplicava-a com dura reserva; o bom sentido, a piedade que poupa e ajuda, ofertava-a com ampla generosidade. Não conhecia muitas pessoas, mas arriscava formular juízos acerca delas, a partir da ótica do espectador alheio que era. Concluía ser, nesse quesito da compaixão, um num milhão. Não esperava testemunhar gentilezas que implicassem sacrifícios por parte de ninguém, inclusive o Sr. Cahtóris. Numa palavra: desconfiança... O comerciante podia muito bem estar a guiá-lo para os lobos.
Ora, mas Lao não parecia preocupado. Poder-se-ia mesmo dizer que estava todo satisfeito na companhia do velho. “E eu o teria deixado cair...”, reprovou-se o garoto. “Devo-lhe uma... Não. Devo-lhe várias.” E adiantou-se. Rastros de sangue nos ladrilhos.
O vendedor levou os caminhantes pelo circuito de ruas. Cinco minutos de marcha para o sudeste. Em frente tremulava um archote, junto a um batente.
– Ainda bem que seu cão tem orelhas e faro argutos. Senão não me teria percebido. – O negociante pusera em desuso o discurso frenético, específico de sua qualidade profissional. Articulava com mais calma, a voz agradável. Pegou o fogo e abriu a porta.
– Bem-vindos a meu lar. Entrem.
O cachorro não fez cerimônia e aconchegou-se folgadamente sobre um tapete felpudo. O Sr. Cahtóris não reclamou das patas sujas em seu piso. Acendeu os candelabros das paredes e por fim ateou chamas à lareira.