Tiberia era pequena e fracamente populosa em comparação às capitais urbanas do Reino de Icintareo. Sua população oficial não beirava sequer duas centenas de habitantes. Mas todos os anos, sobretudo à época do Festival Escarlate, um milhar de elfos, homens e anões, provenientes dos mais diversos cantos de Vartäe, visitavam a cidade. A excelente qualidade da cerveja e das estalagens tiberienses era amplamente reconhecida, o que contribuía para alimentar o turismo, além do próspero comércio local.
As comemorações tinham seu auge na noite do solstício em que havia sete anos a Lua desaparecera, e alongavam-se no mínimo por mais quatro dias, a exata duração da Primeira Chacina, e no máximo pelo tanto necessário para se atingir o Argendëi[1] da decana corrente. Nesse período mandavam decorar as ruas de Tiberia no Haureanöx, o pôr do Sol, com lamparinas de chama rubra penduradas à altura dos telhados das casas por fitas também vermelhas. Havia muita música e muitos jogos e muita dança e muita festa. Lançavam fogos de artifício e a Praça Central transbordava gente, assim como as tavernas, mas estas eram um caso à parte, porque os bêbedos e bufões ali reunidos não nutriam o menor interesse por explosões de cor no céu.
A estrutura de Tiberia fora planejada – e isso por si só já diria o suficiente a seu respeito. Seth estudara geografia e história, mas não tinha notícia de outra cidade planejada. Não no Ocidente. Nenhuma além de Tiberia. Pois a construíram para garantir o conforto e a segurança dos habitantes e, especialmente, dos não habitantes. Uma muralha de intimidar envolvia a cidade: duas paredes de estacas de madeira na vertical – como dentes monstruosos em alinho – perfaziam circunferências concêntricas, guardando uma distância de dois metros entre si, onde haviam despejado barro, areia, argamassa e pedregulhos miúdos, tudo misturado. A aparência da fortificação era tosca, porém era inegável sua compacidade. Portões em arco – um a leste, outro a oeste e um terceiro ao sul – consistiam nas únicas vias de acesso à urbe. Encravada no extremo norte da muralha, uma torre sempre ocupada por quatro olhos atentos vigiava os planaltos nortenhos, domínios de bárbaros.
O menino marchava terreno abaixo, lento, vacilante, nauseado. A fadiga, as escoriações, o mormaço retido pelo negror de sua vestimenta, todos eram adversários ferrenhos numa batalha que o semielfo não via meios de vencer. Tentava apenas resistir à derrota, mas já estava bem abatido. Cambaleava debilmente, por mais que tomasse cuidado para não pisar em falso. Pesavam-lhe os sapatos quando erguidos, como se feitos de chumbo, e ao chão aterrissavam que nem duas bigornas. Despendia vigor para pifiamente não tombar, pois adivinhava que, ocorresse o pior, ficaria esparramado o resto do dia, sem força para levantar-se.
Era mais do que esquisito esse quadro sintomático. Seth nunca se sentira assim tão grogue, e sem a mais vaga ideia de por quê. Não estava doente e em outras ocasiões rumara para Tiberia sob a chuva ou em meio à neve, ou ainda enfrentando muito mais do que intempéries da natureza. “Algo está errado”, pensou enquanto sua visão turvava-se. Depressa se lhe esvaía o foco da entrada da cidade, enquanto a rua principal, apinhada de gente, já não passava de mero borrão colorido. Logo, literalmente num piscar de olhos, o garoto não conseguia enxergar mais nada.
Pôs-se tão desesperado que um grito possante, três vezes emitido por um vozeirão vindo de trás dele, penetrou-lhe os ouvidos como um chiado fraco, longínquo, e uma só vez:
– Saia da frente, moleque!
Mas Seth não cumpriu o aviso. Afinal, como ele saberia para onde ir sem poder ver?! Onde era a “frente” que devia abandonar? Não era mais capaz de avançar nem de recuar, ainda menos de esquivar-se para o lado correto. Tateou o vento na esperança de tocar algo que lhe desse uma ínfima noção de qual direção adotar. No momento em que percebeu a inutilidade desse método, alguma coisa empurrou suas pernas e ele desabou sentado. Comprimiu as pestanas em réplica à dor do tombo. Escutou o ladrar do cão, o calcar de patas de cavalos, o ruído de rodas amassando o capim e, por fim, a mesma voz anterior dizendo: