II.3 - Não adianta chorar pelo leite derramado

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Um anão irritado saiu inesperadamente das sombras, pisando forte, e teria atropelado Seth, não fosse uma esquiva fortuita. No lusco-fusco do limiar, os olhos do menino faiscavam como pérolas ao Sol: prova da herança élfica, mais evidente nele do que no irmão. Todavia, nem a mais distraída das pessoas teria ignorado a aproximação daquele nanico que bufava e praguejava alto, sua voz firme e imperiosa, incompatível com sua estatura. E entremeado às palavras rudes e profecias de vingança e maldições para “todas as gerações futuras do trapaceiro até o Fim do Tempo”, podia-se ouvir o som dos pés descalços martelando o ladrilho lodoso. Sim, pés descalços. Pés descalços retumbando como vigorosas machadadas no tronco de um carvalho envelhecido. Decididamente, era perigoso barrar o trajeto de um anão irado.

Pois se para alguém das Gentes Grandes parecia fácil submeter um dos Pequenos – talvez um pouco mais desafiador do que disciplinar uma criança briguenta –, estes últimos não julgavam seus inimigos pelo tamanho, nem sequer olhavam para cima durante um duelo, porquanto, caso considerassem apropriado, não hesitariam em decepar as pernas do adversário – e só aí lhe encarariam os olhos, quando no mesmo nível dos seus. E assim eram os anões: obstinados, ambiciosos, de temperamento quente e instável, tal qual a lava, donde nasceram havia milhares e milhares de anos, e para onde, conforme as tradições dos Barbalvas, seus espíritos de fogo retornariam, após o último suspiro do corpo de carne. Eram implacáveis em batalha, e cordiais, inigualavelmente cordiais, contanto que não fossem desonrados ou ludibriados. Sobretudo, contanto que não fossem roubados.

O sujeito a quem o nanico chamava “trapaceiro”, alvo das pragas e xingamentos, possivelmente só sobrevivera porque o Pequeno não trouxera seu machado consigo. E os anões jamais lutavam sem as próprias armas. Para eles, os machados simbolizavam suas almas ardentes e valiam mais do que toda a prata, todo o ouro e todos os diamantes de Vartäe juntos. O Povo Nanico acreditava que suas lâminas de aço continham o vigor e a fé daqueles que as manejavam, portanto se recusavam a combater quando delas não dispunham, ainda que a guerra estourasse a seu redor.

Por mais velho que fosse um anão, decerto seu machado ainda seria o primeiro e o único que forjara para si. A forjadura integrava um ritual de passagem, a demarcar a transição do jovem ferreiro para a fase adulta. Depois de sentir o calor da fornalha, contemplar o metal derretido e fervente, e moldá-lo segundo as instruções de seu pai, mas de acordo com os próprios anseios, o guerreiro recebia sua nova arma, com seu nome gravado: a arma mais importante do que a vida, uma vez que esta dependia daquela. Até sua morte somente esse machado ele brandiria, e somente ele podia tocá-lo, pois durante a labuta do aço e do bronze somente um artesão fora marcado por queimaduras e cortes: o dono legítimo.

Era só ele quem consertava o cabo, quando partido. Era quem afiava a lâmina, quando cega. Quem polia e limpava o metal, quando impuro. Daí surgiu o famigerado provérbio dos anões: “O melhor dos guerreiros é, antes, o melhor dos ferreiros”. E, além do forjador, ninguém mais podia manusear o machado, sob pena de perder as unhas ou ter as palmas causticadas a ponto de enegrecerem. Ou ambas as coisas. Pelo menos assim rezavam as superstições do Povo Nanico, e era prudente crer nelas.

Seth:

E isso tudo Mestre Paetros ensinou a mim e a meu irmão numa noite de Hima’gnnön, quando a neve se acumulou em monte de metro em volta da casa e ainda não dava sinais de que pretendia cessar. O sinistro coro de uivos, do vento e de Thriälbion, o Lobo Branco, além do árduo trabalho matinal – nós, sob o pretexto de “treinamento para corpo e mente” do Mestre, tínhamos removido, com as mãos nuas, a cobertura branca e pesada que ameaçara fazer a palha do teto ceder –, incitou nosso recolhimento à frente da lareira na sala de estar, buscando o calor do fogo acolhedor. O Mestre, sentado próximo a Lao, que cochilava de leve junto às brasas, fitava a chama, cotovelos apoiados sobre as coxas, mãos unidas sustentando o queixo, o olhar longínquo; parecia perdido em recordações.

Além do Sol e da LuaWhere stories live. Discover now