I.3 - Dois irmãos

25 0 0
                                    

– É sangue – sussurrou para si, alarmado. O cão já se apercebera e meteu-se a puxar o dono pela bota para escoltá-lo a um local seguro. Seth não se moveu, no entanto, e contraiu as pestanas para aguçar a vista e desvendar de onde vinha o odor. Discerniu ao longe, no noroeste, três silhuetas altas, esguias da metade para cima e largas daí para baixo. Silhuetas que reconheceu como as de homens montados em cavalos.

Sem dúvida eram eles quem emanavam o cheiro de sangue.

Taquicardia súbita invadiu o menino. Enquanto suas pernas bambeavam como se a desmanchar-se, gelo brotou-lhe dos poros e um calafrio arrepiou-lhe a espinha. Ele queria fugir, precisava fugir, precisava esconder-se daqueles que se aproximavam, mas os músculos não respondiam. Aspirava o cheiro medonho em seu crescendo constante, a consumir todo o mormaço do dia. Os cavaleiros avançavam rapidamente e logo o detectariam. Seth não sabia as intenções deles nem se eram hostis, porém não lhe parecia que indivíduos fedendo a sangue fossem amigáveis, e todo o terror inexplicável que o dominava só confirmava essa presunção. Ele tinha de sair dali.

Conteve um grito. Uma fisgada atingira-lhe a perna direita após a certeira mordida de Lao, que logo afrouxou as mandíbulas.

A dor prevaleceu sobre o medo e Seth pôde enfim se mexer. Sem tempo a perder, correu para um arbusto espinhento ali perto e embrenhou-se entre os ramos grossos e espetos. O cachorro foi atrás do mestre, mas posicionou-se fora do refúgio, em guarda.

Em breve os estranhos já estavam perto o bastante para o semielfo poder divisar-lhes os traços. Trajavam mantos vermelho-escuros, esfarrapados e sujos, com capuzes sombreando-lhes as caras. Calçavam botas pesadas, escudadas em pontos estratégicos por placas de aço velho e arranhado. Um deles levava consigo um estandarte, cuja bandeira, também avermelhada e com o emblema de uma Lua minguante negra no centro, esvoaçava ao vento. Outro, montado num corcel cinzento, portava uma espada embainhada presa ao cinto. E o restante, que exalava um fedor de sangue muito mais forte que o de seus parceiros, tinha a montaria num marrom que beirava o preto e carregava um objeto grande às costas.

O grupo dirigiu-se à área que Seth ocupara fazia um minuto. A velocidade dos cavalos foi diminuindo, o galope converteu-se num trote lento até eles pararem completamente – justo em frente ao arbusto em que o garoto se dissimulava. “Tinha esperança de que passassem direto. Mal pude avistá-los com meus olhos de águia: teriam eles sido capazes de me notar àquela distância?!”, refletiu com o coração disparado. A suposição insinuou-se concretizar quando o porta-bandeira falou com uma voz grave:

– Foi mais ou menos aqui. – Alisou o pescoço de seu garrano, que patinhava na poeira recém-erguida, irrequieto. “Ele fareja o medo de seu cavaleiro. Ou meu medo.”

– Tens certeza, Vëxilo? – perguntou o sujeito do corcel cinzento, que desmontou e agachou-se para analisar o chão.

– Absoluta, capitão Hidëo. Algo ou alguém ficou parado aqui durante um momento e depois se deslocou para aquele emaranhado de caules espinhosos.

Por que não o disseste antes, idiota?! – vociferou o ginete na montada negro-acastanhada, que saltou da sela e encaminhou-se ao arbusto, seguido do capitão. O porta-bandeira soltou o ar devagar, retomando o autocontrole.

O fim chegara. Seth não tinha como escapar. Permaneceu encolhido, esperando a morte, tiritando, suando frio. Não lhe agradava a ideia de deixar-se matar tão facilmente, mas o que ele poderia fazer para reagir, se nem havia trazido sua espada consigo? O garoto ouvia o retumbar seco dos passos dos inimigos, mais alto e mais alto. Logo eles o descobririam e logo seu corpo experimentaria ser trespassado por uma lâmina afiada.

Pensou nos pais, que haviam sacrificado as próprias vidas para preservar a dele. Alegrou-se porque receberia a oportunidade de reencontrá-los, mas ele não teria coragem de encará-los uma vez que houvesse desperdiçado seu ato de amor incomensurável. Pensou no Sr. Dimethio e na torta de maçã, que jamais comeria novamente. E julgou-se ridículo, pois ridículo era o pensamento. Pensou no Mestre, que o educara a não desistir em nenhuma hipótese. E reprovou-se pela covardia. Pensou em Lao, que se arriscava mais do que ele. E maldisse a si e sua impotência.

Além do Sol e da LuaWhere stories live. Discover now