– Vamos! Lá está ele, lá em cima!
– Como ele subiu no telhado?!
– VOCÊ NÃO CONSEGUIRÁ FUGIR, SEMIELFO!
Os guardas avançavam. Os nervos de Seth pulsavam de adrenalina, o olhar prateado persistindo. Um dos espadachins começou a desbravar a sucata, o ímpeto surpreendente, na verdade incoerente com a presunção de que, devido à armadura que portava, a flexibilidade de seus músculos e a liberdade de seus membros restariam comprometidas. Talvez, em parte pelo desejo de restaurar a honra da classe, em parte pela voracidade marcial que lhe haviam incutido a hierarquia e a disciplina militares, uma tenacidade descomunal devia arder-lhe no peito. No entanto, para o menino, essa demonstração de força artificial mais merecia sua pena do que sua deferência. Quanto ao outro guerreiro, dava meia-volta pela viela, ou em busca de reforços, ou planejando acompanhar o fugitivo pelo nível do solo.
Mas o fato era que o garoto não alimentava esperanças de tão cedo poder descer. Pelo menos não aos seis metros que se encontrava distante de um chão duro. Sem como retroceder à escada, ao lixão guarnecido por um perseguidor obstinado e fedorento, decidiu marchar pelos telhados. Já não lhe interessava sair da cidade, nem sequer lhe passava pela cabeça que, enquanto navegava ao sabor das ondas de barro e argila, os portões da urbe estavam a fechar. Empenhava-se puramente em livrar-se dos incômodos problemas de bronze.
Rumando por aquele caminho irregular (“E longe de convencional”, riu-se), o semielfo tornou-se para trás no trecho em que a estrada de casas bifurcou-se: um ramo em frente e o segundo para a esquerda. Notou que o guarda, uma vez no topo, sacara a besta e preparava-a com um dardo...
E que ameaça inconsistente! Que piada de blefe! Ora, fosse o guerreiro caolho, fosse um lamentável praticante de tiro ao alvo, fosse um arqueiro mais habituado a dedilhar a corda da arma para toscamente musicar do que a disparar dardos – fosse tudo isso junto –, não teria, ainda assim, incorrido em tão deplorável desempenho. Pois o projétil errou feio, preferindo voejar perto dos corvos nas alturas a perfurar o crânio de Seth. E este pudera jurar que, em face da flamejante Tiberia e das estrelas, seus cabelos pareciam a ponta de um farol a gritar “Aqui, aqui! Acerte-me, tonto!”. Ereto no cume de um dos telhados, imóvel, dispusera-se em perfeita pose defensiva, pronto para esquivar-se no instante correto... Mas não! Nada! Nem um ventinho raspou seu rosto! A frustração foi tamanha que ele sem medo retornaria de braços abertos ao atirador, num desafio à queima-roupa, caso seu bom senso não lhe superasse a arrogância. Incapaz de aguentar, todavia, soltou um risinho de escárnio ao virar-se para o leste; evitou continuar na rota do sul, já que ela poderia desembocar na varanda de algum hotel à margem da Avenida do Sol Nascente.
Indiferente (ou literalmente cego) quanto ao deboche do menino, o perseguidor desferiu mais dois dardos. Três. Quatro. E célere, embora mecanicamente, alternava os turnos de corrida e posicionamento, a pausa para o fôlego e a recarga de munição à besta – “Em teoria inventada para facilitar o combate à longa distância”, alfinetou o garoto em seus pensamentos. Inconsciente de que a herança élfica lhe emprestava uma parcial visão noturna, o semielfo divertia-se agora com a ideia de que a noite, sem dúvida mais densa para o guarda, talvez estivesse conspirando para sua escapada. Cinco. Seis. Erguia o pescoço de vez em quando e gargalhava adoidado ao conferir as trajetórias escatológicas de uns projéteis. Sete. Dez. Outros poucos se chocavam em vão contra as telhas, mal ele se abrigava nas trincheiras formadas pela cadeia das coberturas em Vs invertidos.
Seth engoliu saliva para abafar um poderoso “Trouxa! Mire antes de atirar!”, que vinha fazendo-lhe cócegas na ponta da língua ferina. Estava eufórico e percebeu ter sede. Não costumava sentir-se assim. Era natural que precisasse repor água após tanto exercício, mas era incompatível com seu jeito aquela euforia, aquela confiança inabalável, às portas da temeridade; uma parte de si reconhecia isso. Seus olhos: era neles que residia a fonte do comportamento anormal. Prata traiçoeira... Contudo outra parte de si não enxergava as coisas dessa forma; pelo contrário: gostava do novo eu ousado e destemido.