Lucas mordeu o meio pão que lhe fora servido. A refeição resumia-se a um pedaço
daquela espécie de broa, mais um prato da mesma sopa rala e um copo de água. Tinha
chegado em boa hora. Estava faminto e sedento. A sede era o que mais incomodava. Olhando
através da porta aberta viu que Gabriel continuava dormindo, sem dar trela ao prato de
comida. Estranhou, o homem tinha comentado que estava com sede e fome também. Talvez
devesse acordá-lo. Porém, antes de levantar-se, desistiu. Para que se importar com aquele
desconhecido? Nem sabia quem era o vizinho de cela. Foda-se. Talvez fosse um ex-
presidiário. Talvez um maluco qualquer. Só não entendia por que, sendo ali um hospital, era
tratado daquela forma. Feito um bicho. Ainda mais ter de compartilhar o tempo com aquele
cabeludo estranho. Lucas meneou a cabeça. Esfriou o fluxo de pensamentos. Recapitulou suas
últimas concatenações, toda aquela maçaroca de maus pensamentos. Por um segundo não se
reconheceu. Por que a antipatia crescia tanto contra o vizinho? Não conseguia entender. Só de
olhar para aquele amontoado de cabelos dormindo crescia uma irritação desconcertante. O
homem não tinha lhe feito nada. Mas alguma coisa tinha. Por que tanta repulsa? Lembrou de
uma sala de aula. Um rosto. A mesma impressão. Antipatia imediata. Um ex-colega de escola.
Às vezes, somos acometidos dessas coisas. Como se tivéssemos vivido vidas passadas ao
lado daqueles supostos estranhos. Desentendimentos além vida. Lucas sorriu dos pensamentos.
Fechou os olhos engolindo mais um pedaço de pão. Era religioso? Não se lembrava. Tentava
ver uma igreja. Lembrar-se da bíblia. Devia seguir alguma religião. Por que ainda não
lembrava das coisas? Tinha que falar de novo com a Dra. Ana. Estava cheio de dúvidas e,
principalmente, de vontade de sumir daquele quarto de loucos. Aquele cabeludo só podia ser
um maluco. Só podia. Se chegasse muito perto tomaria um safanão. Podia ser um daqueles
psicopatas. Ficam quietos na cama, como o amontoado de cabelos estava agora, mas, dc
repente, levantavam-se como loucos e saíam estrangulando meio mundo. Terminou a sopa.
Olhou para a colher de metal. Se aquele doente mental viesse para sua cela, veria o que era
bom para tosse. Talvez conseguisse retorcer a colher, torná-la pontiaguda. Gabriel não perdia
por esperar. Fogo e fumaça. Ouviu um barulho. Explosões. Algo como rojões. Um daqueles de
seis tiros de canhão. Caramuru. Caramuru? O que significaria isso? Os rojões... tinha ouvido
mesmo, ou o disparo fora em sua cabeça? Lucas fechou os olhos e inspirou barulhenta e
longamente. Vontade de ver uma janela. Onde estaria? Onde ficava o Hospital Geral de São
Vítor? Em São Paulo? Qual bairro? E o que mais atormentava era não descobrir quanto tempo
estava ali. Precisava saber. Queria ver uma janela. Ver o mundo. Ver onde estava. Ibirapuera?
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Bento
TerrorUma noite começada como outra qualquer entra para história da humanidade quando metade dos seres humanos adormece de forma inexplicável. Tratada como uma epidemia, a doença desencadeia um caos sem precedentes nas cidades do mundo. O pesadelo parece...