Hospital

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Ninguém disse nada, nem mesmo minha mãe, mas eu sabia. Talvez ela não, mas eu sabia que meu pai tinha partido. Eu sentia o vazio em meu peito com sua morte. Ele não durou muito, meu valente pai com seus cabelos escuros. Ele se foi.

Minha mãe e eu estávamos aguentando mais tempo, deitados lado a lado em nossas camas. Embora sentisse que nossa luta era em vão. A febre era devastadora e eu sentia dor por todo meu corpo, pulsando em minhas veias. Sabia que eu estava muito pior que minha forte mãe. Eu mal podia senti-la quando ela tentava cuidar de mim em meu leito de morte.

Estava tão tomado pela doença que nem ao menos podia falar. "Mãe", eu quis dizer, "não faça isso. . . cuide de si mesma, não de mim. " Eu tinha dezessete anos, mal havia começado minha vida ainda, mas sabia que ela estava se acabando. Como qualquer bom soldado, eu era capaz de reconhecer uma batalha perdida.

Em algum momento, consegui abrir meus olhos e ver um pouco mais claramente. Eu lamentei tê-lo feito. Mal conseguia ver Mary deitada em uma cama no outro lado do quarto. Tão jovem. Seus olhos estavam bem abertos. Eles não se moviam. Foi aí que soube que ela estava morta, muito antes deles jogarem um lençol por cima de seu pálido corpo. Eu sentia muito nesse momento, sentia por não ter conseguido amá-la.

De repente pude ouvir a voz frenética de minha mãe, tão perto e ainda tão longe. Ela tinha dito meu nome, aquilo sim ouvi, entretando o resto foi um borrão. Parecia que ela estava falando com alguém, não tinha nenhuma idéia de quem. Um médico talvez? Uma alucinação? Eu a podia sentir partindo, o vazio em meu peito tornou-se mais forte.

Como meu pai, eu simplesmente soube. Minha linda mãe de cabelos cor de bronze, com seus impactantes olhos verde-esmeralda se foi. Não havia sobrado mais ninguém. Eu queria mostrar meu pesar, expressar meu remorso para a favorita mulher em minha vida, mas a doença não me deixava. Eu nem pudia mais manter meus olhos abertos. Me envergonhava infinitamente o fato de que não podia pagar meu respeito à minha mãe, nem mesmo em meu próprio leito de morte.

Não tinha nenhuma idéia quanto tempo tinha passado, poderia ter sido minutos, poderia ter sido meses. Não tinha mais nenhum conceito de tempo, era irrelevante. Eu estava morrendo, nada mais importava. Morte. . . isto não era o que eu tinha ansiado desde sempre? Realmente era a glória de um soldado, ou era a de uma orgulhosa morte?

Sim, eu concluí, nunca fui apaixonado por ser um soldado. Eu estava apaixonado pela morte. Fazia perfeito sentido para mim. Eu queria morrer. Exceto. . . não haveria nenhuma glória nesta aqui. A vergonha regressou. Talvez todos esses pensamentos somente eram o resultado da febre. Estava apenas delirando.

Mas eu podia sentir. Morte. Era estranho, muito mais real do que poderia ter imaginado. Uma força poderosa se aproximando para levar o pouco de vida que eu ainda tinha. Deixe vir! Pensei selvagemente. Honorável ou não, eu estava preparado para ela. Qualquer coisa para acabar com a dor.

Então aconteceu. Eu estava voando, minha alma alcançando os céus. Logo a escuridão em meus olhos partiria e tudo que eu veria seria luz. Me reuniria com meus pais. Estaríamos contentes, seguros e em aconchego.

De repente, parei de voar e senti que estava sendo colocado em algo duro e frio. O que tinha acontecido? Eu tinha sido negado o paraíso? O que eu tinha feito de errado? Estava desesperado para ver a face de minha mãe novamente, balancei minha cabeça de um lado para o outro, tentando forçar meus olhos a se abrirem.

A nova dor que veio era algo além da imaginação humana. Rasgou minha carne, partiu minha alma em pedaços. O fogo estourou por minhas veias, e parecia estar vindo de mais do que apenas uma fonte. Meu pescoço, meu peito, minhas mãos, fogo ardente insuportável.

Eu gritei, rugi, me debati. Tentei buscar cegamente pelas chamas, para fazer delas cinzas com minhas próprias mãos. Mas não podia me mover, enormes pedras estavam me contendo. Então este é o Inferno? Estou sendo castigado por não ser o homem que todo mundo queria que eu fosse? Qual foi meu pecado? Fiquei revoltado, eu NÃO tinha pecado, eu não era um pecador! Como elas ousam, as forças divinas de natureza, tomarem minha alma apenas por ser humano! Bati meus dentes às tais pedras, acreditando que poderia me livrar à base de mordidas se precisasse.

Eu sinto muito.

Eu parei. Isso foi falado tão claramente, quase pensei que tivesse sido dito em voz alta. Mas não foi. Ouvi em minha cabeça. Lentamente, um pouco de cada vez, abri meus olhos. Vi seu rosto e entendi. Foi o pensamento dele que eu ouvi.

"Quem é você?" sussurrei.

"Meu nome é Carlisle, " ele murmurou. " Você estava morrendo. Sinto muito, eu tive que fazer o que podia. "

"Você causou toda esta dor?" Franzi minhas sobrancelhas. Ele não conseguia me olhar nos olhos.

"Sinto muito, " ele repetiu. "Eu tenho pensado nisso por muitos anos. Acreditei que o que eu estava fazendo era o certo. " Eu estive sozinho por muito tempo.

"Por quanto tempo?" perguntei.

Surpreso, ele me olhou com seus arregalados olhos em tom marrom-dourado. "O que você disse?"

"Por quanto tempo você esteve só?"

Ele continuou me encarando por um longo momento. Foi aí quando percebi que eu tinha respondido ao pensamento dele, que não foi dito em voz alta.

Você pode ouvir o que estou pensando?

Abri minha boca para dizer que sim, mas então outra onda de dor me atingiu. Meu corpo inteiro estremeceu e ele agarrou depressa meus ombros.

Vai acabar logo, eu prometo.

"Logo quando?" ofeguei. O mesmo olhar de surpresa apareceu em seu rosto, juntamente com outra coisa, mas eu não sabia dizer o que. Me concentrei enquanto a dor parava. Eu podia ouvir orgulho na mente dele.

Eu sabia que meu pai tinha me amado, de um modo obrigatório. Afinal de contas, eu era o filho de um poderoso advogado. Era uma de suas realizações. Porém, Carlisle parecia estar orgulhoso de quem eu era como pessoa, em lugar de 'aquele menino' que meu pai exibia. Havia mais sobre meu pai do que isso, mas eu estava tendo dificuldade em segurar minhas recordações.

Olhei para Carlisle. A pele dele era muito pálida, suas mãos eram frias e duras. Havia algo muito ameaçador sobre ele, e ainda assim sua mente era cheia de compaixão. E amor. Ele me amava como se eu fosse seu próprio filho, eu podia ouvir isto. Sorri para ele e ele sorriu em retorno. Vi um sorriso duplo, em seus lábios e em sua mente.

Então o fogo relampejou novamente através de meu corpo, e meu sorriso mudou para um rosto fechado em dor. Meu peito pesou e se contorceu com a pulsação correndo por cada célula do meu corpo. Não conseguia olhar para Carlisle, sua face horrorizada de arrependimento só me amedrontava ainda mais. Sentia como se minhas vísceras estivessem sendo invertidas, se transformando em um corpo que não era o meu. Meus gritos eram uma ação sem sentido contra a dor, eles só intensificavam a sensação de estar morrendo.

Era uma morte nova, esta dor em meu coração se apertando e se esticando para fora de meu peito. Me perguntei quantas vezes um homem poderia morrer, se em primeiro lugar eu fosse de verdade um homem, ou se eu fosse ao menos permanecer humano. Um humano. . . humanidade. . . alma. . .

Isso durou por três dias. Estava tornando-me mais ciente das horas que passavam, e então de todos os minutos, enquanto sentia minha humanidade deslizando por meu fraco aperto. E então meu coração parou. Não foi um grande evento, simplesmente apagou em meio ao nada. Vazio. Oco.

Porém eu nunca poderia esquecer da dor desses três longos dias. Se me concentrasse na memória dos dentes afiados de Carlisle em minha carne, e sua língua deslizando e selando as feridas, eu ficaria perturbado.

Perturbado.

Morto.

Zumbi.

Abri meus olhos, nem havia percebido que eles estavam fechados. Vi Carlisle pairando sobre mim. Elevei minha mão lentamente, franzindo à minha nova pele. Segurei minha palma próximo à visão do rosto de Carlisle. Minha nova pele estava agora tão pálida quanto ele.

Este era o momento no qual eu soube que tinha morrido. O momento. . . quando acreditei que tinha perdido minha alma.

Verde, Vermelho, Dourado.Onde histórias criam vida. Descubra agora