MARINA
Mentiria se dissesse que o encontro com o Davi não me abalou. Acho que fiquei parada por uma meia hora, antes que ele saísse do meu campo de visão. A verdade é que o fato de ele morar na rua mexeu comigo de um jeito que não sei explicar... É como se de repente despertasse para uma realidade com a qual esbarrava todos os dias e não conseguia enxergar. E ele não ter me dado uma chance de retribuir o que fez por mim, foi como um balde de água fria no inverno.
Além disso, novamente seus olhos prenderam os meus e sua dor me alcançou. Por isso, quase toquei em seu rosto... Não sei onde estava com a cabeça, mas o gesto foi tão natural quanto a velocidade com a qual ele se esquivou.
Não cheguei à diretora de elenco à toa. Conheço as pessoas, sei quando agradarão os clientes, ou quando se encaixam perfeitamente em determinado papel ou campanha. Esses mesmos instintos, importantes para a minha carreira, agora me gritavam que havia ali uma história, pois aquele homem não tinha apenas os olhos mais tristes que já vira, mas também era bem articulado, algo totalmente diferente do que esperava encontrar. Sim, é horrível dizer isto, no entanto tinha uma ideia preconcebida de um morador de rua e não tinha nada a ver com o homem que encontrei. Ele conseguia ser marcante, mesmo sob cabelos desgrenhados, barba cheia e roupas puídas.
Além disso, o modo como se incomodou com a minha presença, desarmou-me. Deixou-me sem ação, para dizer a verdade. Tinha sido ingênua em achar que teríamos uma diálogo amistoso; afinal ele não mentira: por minha causa, tinha se dado mal.
Passado o baque inicial, respirei fundo, girei sobre os calcanhares e decidi atender seu pedido, deixando-o em paz. Nunca forcei a barra com quem conheço e não mudaria isso agora, ainda mais com alguém que vira rapidamente por duas vezes. Pelo menos, tinha tentado e ele ter rejeitado minha oferta não diminuía em nada minha vontade de pagar o bem com o bem. Ou seja, por pior que tivesse sido nossa quase conversa, não me arrependi, nem considerei a viagem em vão, já que voltei para casa com essa ideia em mente.
À tarde sou surpreendida com a visita da Di, logo após ter saído da Gemni.
— Puxa, que coisa boa! — recebo seu abraço e retribuo com o mesmo carinho.
— Vim ver como está. Conhecendo como te conheço, sei que deve estar entediada.
— O apartamento está enorme, só agora que me dei conta disso — respondo, fazendo-a sorrir, ao se recordar que vivia dizendo que o espaço era pequeno demais. Na verdade, com o Flávio ali, parecia bem menor.
— Não vou dizer que se acostumará rápido, pois não quero mentir — diz com conhecimento de causa, já que mora com o noivo — E fora isso, como está?
— É minha amiga ou a psicóloga querendo saber? — provoco.
— Elas duas são inseparáveis, darling! — pisca e murmuro que sei disso — As duas se preocupam com você.
— As coisas estão indo bem — confirmo e noto uma ponta de desconfiança — Não acredito que a Bia lhe contou! — mato a charada, deixando-a sem graça.
— Era algum segredo?
— Não, só não sei o que ela disse.
— Falou da sua escala hospital-delegacia e de seu empenho para libertar o homem que lhe salvou.
— Davi — eu a corrijo — É o nome dele.
— A Bia havia falado, mas me esqueci. Disse também que você perturbou tanto o pobre do defensor até conseguir a ordem de soltura. Sabia que acharia um modo de retribuir, só não imaginei que fosse tão rápido.
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Um Abrigo para o Coração (Degustação)
RomanceÀs vezes tudo o que desejamos é alguém que nos salve. Às vezes, tudo o que buscamos é o perdão de nossas faltas. Mas sempre precisamos de um abrigo seguro paras os nossos corações. Marina Ele tinha os olhos castanhos mais tristes que consi...