II

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Olhando-se no espelho, acredita que não está tão ruim assim. Sorri, prevendo sua reação se disser o que pensa. Apanha o pincel, que havia ficado imerso na água quente e tira o excesso, aplicando nele um pouco do creme de barbear. Encosta-o em seu rosto e com movimentos circulares começa a fazer a espuma que cobre devagar todas as áreas já preenchidas por uma barba rala. Ergue a cabeça e passa embaixo do queixo, apanhando um pouco da garganta. Finalmente apanha a navalha, pronto para começar. Sorri novamente ao se recordar da primeira vez em que ela o vira utilizar uma navalha.

— Isso aí é muito perigoso! Por que não faz como os demais?

— Porque não sou como os demais! — sua resposta bem-humorada a deixa um tanto contrariada por minimizar seus cuidados. Contrariedade que dura pouco.

— Ah, disso tenho certeza! Caso contrário não estaria com você — a resposta o havia deixado tão satisfeito que fora obrigado a abandonar o que fazia e beijá-la, sujando-a com o creme.

Afastando as recordações, chega a encostar a navalha na pele, sentindo a lâmina fria, porém, é interrompido pelo cheiro de café que invade o quarto. Fecha os olhos, aspirando ao aroma delicioso, adorando mesmo saber que ela surgirá a qualquer momento.

Então, como num script, ela entra no quarto, fazendo barulho com seus saltos altos. Com uma caneca de cerâmica na mão vai até a porta do banheiro e se encosta ao lado dela, observando-o. Seu olhar não esconde o quanto o admira e o acha sexy apenas de cueca. Ele não disfarça o quanto gosta daquele olhar.

— Pronto, do jeito que prefere... Bem quente e forte — o som harmonioso de sua voz quebra a sequência de pensamentos na qual ele tem certeza de que ama sua rotina — Aliás, você é a única pessoa que conheço que toma o café assim, não sei como não queima a língua.

— Sou único, já disse inúmeras vezes — sorri, apanha a caneca, achando-a mais bonita do que nunca, em um vestido com estampa de flores e os cabelos presos em um coque perfeito — E quanto à língua, se a queimar, tenho a melhor enfermeira do mundo — diz, fazendo-a sorrir envaidecida, ao mesmo tempo em que o acha engraçado com aquela espuma toda no rosto — Sabe, estive pensando...

— Sem essa... Não gosto da barba — adivinha-lhe as intenções tão rápido que a única ação que lhe resta é colocar a caneca sobre o balcão — E, a menos que seja rápido com isso — aponta a espuma — Quando beber o café já estará morno.

— Sabe que não gosto de nada morno... – pisca-lhe.

— Por que acha que estou com você? — devolve, também provocando.

— Então, que tal, uma trégua; a gente volta para cama, esqueço o café e deixo a barba para depois — ameaça sujá-la com o creme, fazendo-a dar dois passos para trás.

— Tentadora proposta, porém, você ainda sairia ganhando, permaneceria com isso aí que chama de barba, enquanto prefiro seu belo rosto sem nada que me pinique... E, além do mais, não sou como você que faz seu horário — bate no relógio.

— Não é, porque não quer. Já lhe convidei para ser minha parceira...

— E arruinar sua reputação? Não! — exagera sua reação de propósito — Prefiro nossa parceria aqui. Ela pode ter riscos, altos e baixos, mas que a gente sempre dá um jeito de consertar... Por falar nisso...

Um Abrigo para o Coração (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora