Capítulo 10

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MARINA

Foi por estranhar sua demora que me aproximei do banheiro. Sei lá, depois de ver seu estado ontem, temi que não estivesse tão bem quanto havia me feito acreditar. Eu me aproximei do banheiro e estava preste a bater, quando o ouvi chorar. Fiquei tão sem ação que recolhi a mão e fiquei lá parada diante da porta, sem ter a menor ideia do que fazer. Já tinha visto seus olhos se encherem de lágrimas, no entanto, não tinha ouvido ainda sua dor e, por isso, fiquei mais abalada do que gostaria.

Por três vezes cheguei a ensaiar bater na porta, mas não me atrevi a fazê-lo. Ia perguntar o que? Tudo o que tinha vontade? O que leva um homem que se sujeita ao frio, à fome e a condições sub-humanas a chorar? Ou então: Por que continua na rua?

É óbvio que não teria nenhuma resposta. Chego a pensar em mexer na mochila dele, porém, afasto essa ideia, mesmo porque já, sem ter sua permissão, de madrugada coloquei as roupas que estavam no saco de lixo, para bater, estendendo-as na área. Decido voltar pra a cozinha e esperá-lo.

Mais vinte minutos. Não menti ao dizer que meu horário é flexível, mas a cada minuto que ele demora, mais angustiada fico. E, então, quando escuto a porta sendo aberta, finjo uma normalidade, tentando agir como se não o tivesse ouvido. Apanho o bule de cima do fogão para colocá-lo na mesa.

— Não queria demorar tanto — a voz dele me chega primeiro e, quando levanto a cabeça para olhá-lo, quase deixo o bule cair e por bem pouco não me queimo. Nossa! Espero não estar fazendo cara de boba, mas é exatamente como estou me sentindo. Nas poucas vezes em que o vi, estava com uma aparência bastante descuidada e maltratada. Assim, causa-me impacto vê-lo pela primeira vez arrumado. Os cabelos estão penteados, presos num rabo de cavalo, e a barba pelo menos uns três dedos mais baixa. Além disso, as roupas do Flávio até que ficaram bem nele; ou seja, parece outro homem. Um bem interessante por sinal. Agradeço mentalmente por ele não conseguir ler meus pensamentos. Acho que demorou mais tentando esconder que chorara, porém, seus olhos estão um pouco vermelhos.

— Abusei, eu sei. Sem sua permissão, mexi nas suas coisas. Porém, não roubei nada, apenas apanhei um pente e uma tesoura. Não tenho piolhos, no entanto pode jogar o pente fora, se não acreditar — explica-se, e tenho certeza de que estou olhando para ele com expressão embasbacada.

— Não, tudo bem, não me importo que tenha mexido — digo, meio atrapalhada, finalmente colocando o bule em cima da mesa, antes que faça um estrago.

— Estranho, porque diz algo e age de outra forma, como se isso tivesse te incomodado.

— É impressão sua — tento disfarçar, pois nem morta vou virar para ele e falar a verdade, que meu constrangimento vem do fato de eu, pela primeira vez, tê-lo visto com outros olhos — As roupas ficaram boas.

— Sim — concorda, ainda desconfiado.

— Aceita tomar café? — pergunto receosa, não com a recusa, mas torcendo para que meu olhar admirado não me traia.

Não responde, apenas faz o gesto positivo com cabeça e acho que balbucia um "com licença" ao se sentar, o que me dá mais vontade de saber sua história. O silêncio se intromete entre nós, enquanto nos servimos. Tento deixá-lo á vontade, algo que é difícil, porque a impressão é que se sente intimidado em comer à minha presença. Procuro agir como se ele não estivesse ali e aos poucos ele vai se soltando, saboreando o café da manhã e não apenas o engolindo.

Quando finalmente atingimos uma harmonia, esquecendo-nos por instantes que somos completos estranhos, ouço a porta da sala começar a ser aberta e só não é completamente, porque na noite anterior, havia passado a correntinha pelo lado de dentro, costume recém-adquirido. Levanto-me imediatamente e olho no relógio, não são nem nove horas. Davi faz menção de se levantar também, mas faço um sinal, pedindo que permaneça.

Um Abrigo para o Coração (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora