Capítulo 11

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DAVI

— Quem diria! Voltou antes do que imaginava — Carlos me cumprimenta com o bom humor habitual. Assovia ao ver que aparei  a barba e trago o cabelo penteado — E pelo jeito, bons ventos o trazem.

Não era a minha intenção estar ali também, porém, admito que desde que conheci Marina nada tenho feito de acordo com o planejado. Ainda que não tenha um destino traçado, sempre que nossos caminhos se cruzam, acabo mudando de rota. Sabe o que acontece com alguém acostumado a ficar muito tempo no escuro, quando se depara com um feixe de luz? Sim, os olhos ficam irritados, estranhando a novidade. É como estou me sentindo. Quando deixei seu apartamento, não trouxe comigo apenas roupas novas, veio outras vontades que há tempos não sentia.

— Sim — concordo sem graça, econômico como sempre em minhas palavras. Está um pouco distante da hora em que começam a servir o almoço, portanto, deduz o que fui fazer ali. Sem falar nada, dá dois tapas em meu ombro e faz um gesto para que o siga. Caminhamos por um corredor entre as mesas, ele segue na minha frente com seu andar despreocupado e, por isso mesmo, seguro.

Assim que saimos do salão, ele procura a chave no bolso do avental que usa e para em frente à pequena porta de madeira.

Ninguém imagina que ali, embaixo de um viaduto, possa ter tanto espaço, mas tem; além do salão amplo, onde estão dispostas mesas capazes de atender umas cem pessoas, há o lugar destinado para a conservação dos alimentos e o prepraro da comida e aquela pequena sala, usada para guardar os materiais de limpeza. Ela vive trancada vinte e quatro horas com corrente e cadeado. Aliás, esse detalhe é o que fez com que confiasse a meu amigo o único tesouro que me restou.

— Pronto — Carlos não apenas destranca a porta, como bate a mão no interruptor e acende a luz, pois lá dentro é escuro — Fique à vontade.

Agradeço com um leve aceno de cabeça e entro, vendo-o se afastar. Encosto a porta. Observando as cheias prateleiras improvisadas nas paredes, caminho até o outro lado da sala. Chego a suspirar, quando vejo, em cima de um banco o case, que nada mais é do que um grande estojo preto de lona. Apanho o estojo com cuidado, sentando-me no banco em que estava depositado. Coloco-o sobre meu colo e o abro devagar. É um pecado, sei, porém, ali, empilhados estão boa parte da minha vida.

Passo meus dedos sobre o primeiro, lembrando de todas as suas notas e depois no segundo; vislumbrando a boquilha, o tudel e todas as outras peças com as quais estava acostumado a lidar. Não posso precisar os dias, porque na rua o tempo é algo ainda mais fugaz, mas sei que a música saiu da minha vida, antes ainda de vir para a rua, ao mesmo em que todo o resto o sentido.

E agora aqui estou, chego a ouvir as notas, a sentir o ar saindo dos meus pulmões, transformando-se em sopro e se transmutando em som, em melodia, cada vez mais alto, como se a música reivindicasse seu lugar de direito em minha vida. Quando calei os saxofones, a dor era esmagadora e parecia o mais certo a fazer. Talvez, tenha enterrado a única coisa que pudesse diminui-la.

Tiro do estojo o saxofone soprano, o menor e de som mais agudo. Quase peço desculpas por tê-lo guardado daquela forma, junto de outro, em tempo de riscá-lo, ou inutilizá-lo. Vejo que o aspecto dele reflete o de seu dono.

Sobre mudanças de rotas, pois bem, pensei que essa vontade de tocar nunca mais retornaria, porém, sou obrigado a me recordar de que as coisas não saem nenhum pouco parecida com o que desejamos. O que me traz um dilema: ao mesmo tempo em que sinto esta energia percorrer cada centímetro do meu corpo, fazendo com que me sinta vivo; parece errado seguir este instinto, o que me faz culpado.

Para completar meu estado de espírito, não é preciso ficar muito tempo na rua para perceber que você vale o que você aparenta. Porém, esta percepção me atingiu com mais força, enquanto saía do prédio em que a Marina mora. Isto mesmo, cada vez mais este nome surge em minha mente e me vejo o pronunciando... No entanto, voltemos ao que estava falando... O fato de estar com a barba aparada, cabelo preso (algo que providenciei, antes de entrar no elevador, com a ajuda de um elástico) e vestindo roupas novas fez com que todas as pessoas me fossem simpáticas e me tratassem com educação. Um casal me cumprimentou naturalmente no elevador e o porteiro, deduzindo que fosse convidado de algum morador, desejou-me um bom dia. O mesmo aconteceu nas ruas próximas de onde ela mora, os arredores da estação Ana Rosa de metrô. Nenhum olhar de pena, de repulsa, nem de medo.

Essa perceção, no entanto, não faz com que me esqueça da confusão que causei e presenciei. Devia estar preparado para algo do tipo, já que a manhã tinha sido uma das melhores em tempos. Por mais implicante que eu tenha sido, Marina me venceu ao ignorar meu mau humor e minha agressividade, fazendo com que me sentisse um tolo por tratar mal a quem me acolheu tão bem.

Confesso que rever minha aparência foi uma forma de agradecê-la, ficando à sua altura para me sentar à mesa. A surpresa demonstrada, provou-me estar certo. Afinal, era o mínimo que podia fazer, algo bem pequeno diante de acolher um completo estranho. Só não esperava que um simples café da manhã, capaz de me surpreender com a harmonia experimentada, terminasse daquela forma.

Voltei à realidade ao perceber o inconveniente daquilo tudo. Nossos mundos podem ter colidido, no entanto isso não quer dizer que sejam compatíveis. Sei que a prejudiquei e não gostei de colocá-la em uma situação desagradável. Parece que sempre que nos aproximamos muito, um dos dois se prejudica. Por mais que tenha me surpreendido com nossa harmonia, sou obrigado a retomar minha postura inicial e me manter afastado. É melhor para mim e para ela.

Tive que me segurar para não reagir, e com a raiva que tenho represada em meu peito, talvez todos se assustassem. Porém, a forma como o namorado dela se comportou me incomodou demais. Pareceu tão chocado, quando ela foi agredida, porém, não pareceu se dar conta das outras formas de machucar. Se antes desconfiava, no meio daquilo tudo, tive a certeza de que ele era burro demais para não perceber do que estava abrindo mão. Não sei se minha antipatia por ele vem do fato de que me vi refletido em algumas atitudes, como por exemplo, não valorizar o que tem. Poderia, antes de tirar conclusões precipitadas, ouvi-la, e não apenas ofendê-la. Não sou nenhum sábio, mas sei reconhecer o estrago que as palavras podem causar. Ter ciúme de mim, então, foi a gota d'água! Como se eu, caso fosse meu intuito, pudesse despertar esse tipo de interesse em alguém como ela. Cego, ele é incapaz de perceber que a Marina me vê pelas lentes da gratidão, nada mais do que isso.

Reflito sobre os acontecimentos das últimas semanas, tentando decifrar o que me ensinam. E é como se me desligasse por instantes, chegando a um estado de transe, longe de tudo o que me cerca, completamente inserido no reino dos pensamentos, tantos e tão fora de ordem, e das mais diversas lembranças.

Só me dou conta do que estou fazendo, quando escuto um barulho e olho para a porta. Ali, amontoados, estão todos os funcionários do lugar, capitaneados pelo meu amigo Carlos. Eles me olham num misto de êxtase e decepção.

— Por favor, não pare de tocar — diz a mulher, uma senhora roliça de cabelos brancos, responsável pela cozinha.

Mal sabe ela que o acordo que eu acabara de quebar era exatamente o contrário de seu pedido, afinal havia prometido nunca mais tocar. 

Um Abrigo para o Coração (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora