DAVI
Deixei de me preocupar há muito tempo e deveria ter continuado assim, pois preocupar-me faz parecer que me importo, o que não é verdade.
Descobri que era invisível na segunda noite em que estava na rua. Talvez tivesse sido chocante, se não desejasse com todo o meu ser esta invisibilidade. Depois, sobre os olhares que se voltam em nossa direção: ou são de raiva, ou de medo. Já me acostumei a estes olhares e eles me incomodam menos do que os de pena.
Confesso que não acreditava naquela coisa de estar no lugar errado na hora errada. Primeiro engano da noite. Estava ali por acaso, a moça também. Azar o meu e, em parte, sorte a dela.
Se não sou visto durante o dia, imagine à noite. Após perambular pelas ruas do bairro, fugindo dos assistentes sociais que insistiam em me levar para um abrigo, aquela marquise em uma rua pouco movimentada pareceu-me o paraíso. Imaginei uma boa noite de sono, sem o risco de ser acordado por alguém me jogando água ou de me tornar o alvo de algum filhinho de papai que nos atiravam coisas muito piores do que água.
Esse paraíso mostrou-se um sonho distante, quando escutei um barulho e acordei. Sentei-me e tive que me esforçar para ver o que acontecia. Mesmo de longe reconheci a situação: uma moça se debatia, tentando lutar contra um homem muito mais forte do que ela.
"Em briga de casal...", um lado da minha consciência soprou, insistindo para que me virasse e voltasse a dormir. "Você não é o bicho que todos imaginam", o outro lado respondia, insistindo para que levantasse e fizesse alguma coisa.
E então, quando o homem bateu a cabeça da mulher à parede, descobri que não era tão indiferente quanto me julgava. Precisava agir. Fazia tempo que não andava tão rápido, nem sabia que minhas pernas ainda tinham a faculdade de correr. Porém, quando vi, estava correndo. Aquele animal estava tão concentrado que nem me ouviu chegar. Com toda a raiva que habita em mim, arranquei-o de cima dela, fazendo com que batesse na mesma caçamba que encobria sua sujeira.
- Então temos um valentão aqui - cuspiu para mim, assim que se recuperou, vindo em minha direção. Não sei onde exatamente encontrou uma garrafa e a quebrou, batendo-a contra a caçamba. Mais confiante com essa arma improvisada, sorriu pronto e lançou-se contra mim, pronto para me acertar.
Não se deve brigar com quem nada tem a perder e aquele imbecil descobriu isso da pior maneira. Ele conseguir ferir meu braço, mas superficialmente, no entanto, assim que consegui me esquivar de seus ataques, eu o atingi repetidas vezes, acertando sua mandíbula, seu estômago e a lateral de seu corpo. Em pouco tempo, arranquei a garrafa de sua mão e por muito pouco não lhe devolvi o ferimento, resistindo à tentação e a jogando longe.
Deveria mentir ou omitir como me senti bem em bater naquele cara e nada tinha a ver com estar protegendo uma mulher indefesa, mas sim com o fato de poder descontar em alguém todos os tapas que a vida me dera...
- Não há porque brigar, não sou egoísta, podemos dividir - gruniu, mostrando os dentes sujos de sangue - Quanto tempo você não pega uma mulher?
Tentar me tornar seu cúmplice não ganhou minha simpatia, ao contrário, só me fez ficar com mais raiva. Talvez estivesse há mais tempo do que ele sem uma companhia feminina, porém, nunca usaria seus métodos.
Entregue à ira, ataquei-o com tudo e dessa vez a sequência de socos foi tão intensa que o levei ao chão. Poderia ter continuado por mais tempo, porém, não estávamos sozinhos. Havia a mulher, quase me esqueci dela. Antes de ir a seu encontro, ainda desferi um chute no rosto daquele covarde e o larguei no chão, gemendo como se fosse um cachorro.
Quando me ocupei em socorrê-la, minhas mãos doíam e estava ofegante, afinal fazia muito tempo que não gastava tanta energia em tão pouco tempo.
Aproximei-me e me debrucei sobre ela, onde pudesse ser visto e onde pudesse vê-la, tentando avaliar seu estado.
Bastou seus olhos castanhos me fitarem, caramba, para fazer com que me sentisse um idiota, por ter agido certo pelos motivos errados. Mesmo com um senhor machucado e sangue a escorrer por sua testa, imaginei que se existissem anjos, eles deveriam ter aquela aparência.
- Você está bem? - tentei - Consegue me ouvir? - nenhuma resposta - Vou lhe tirar daqui e procurar ajuda.
Ela me olhou fixamente por um curto espaço de tempo e então cerrou seus olhos. A impotência é o pior dentre os grandes monstros. Recusei-me a ser sua vítima novamente. Prometi a mim mesmo, como se dependesse de mim essa decisão, que aquela mulher não morreria nem ali, muito menos na minha frente. Lembranças quase me paralisaram. Precisei de mais força para lidar com elas do que para derrotar meu adversário.
Peguei-a no colo com dificuldade, não porque fosse pesada, mas porque o lugar era muito apertado e meu braço ardia um pouco. A blusa que usava estava rasgada, por isso tentei ajeitá-la, ignorando o quanto aquela visão fez com que me sentisse, depois de muito tempo, vivo.
Comecei a caminhar, tirando-a dali. O sangue de sua testa não parava de escorrer e, nem bem tinhamos chegado à ponta da rua, a mesma blusa parecia uma tela branca que era, devagar, tingida de vermelho.
Faltava pouco para ganharmos a rua de trás, quando um homem que vinha caminhando, parou ao nos ver.
- Que merda é essa? - o modo como olhou a mulher em meus braços deu-me a certeza de que a reconheceu. O jeito como olhou através de mim, demonstrou que estava encrencado - O que fez com ela?
- Nada. Estou procurando ajuda - mantive a calma possível em uma situação como aquela.
Sem estar convencido, ele se aproximou mais e assim que viu o vermelho vivo nas roupas e no rosto dela, foi como se estivesse diante de um espelho, pois aquele olhar que nele enxerguei, era meu velho conhecido.
- Tire suas mãos imundas dela, agora! - exigiu e tive que engolir a resposta, afinal que tipo de imbecil pede uma coisa dessas? Se ela estava no meu colo, tirar as mãos dela significava o que? Deixá-la cair?
Mais um passo em minha direção. Em outra vida, conheci vários homens como aquele. Óculos de grau, cabelo num corte convencional, blaser marron por cima de uma camisa branca, calça jeans e sapatos pretos mais brilhantes do que as estrelas do céu. Em outra vida, tinha muito em comum com caras como ele, nós nos dávamos bem.
- Estamos perdendo tempo. Não entendeu que ela precisa de ajuda?
Nervoso demais, ele tirou o celular do bolso e mesmo trêmulo digitou, fazendo uma ou duas ligações. Naquele momento, voltei a ser coisa, pois ele me olhou como se eu fosse algo e não alguém.
Assim que desligou, aproximou-se de uma vez e praticamente a tirou dos meus braços, chamando-a por um nome que não consigo entender, desesperando-se ainda mais ao não conseguir despertá-la.
Evito olhar a cena, já me intrometi além da conta. Dou as costas e volto pela rua de onde vim. O homem que golpeei não está mais onde o deixei, sinto pena pelas outras mulheres com quem ele se encontrar nas caladas da noite.
Volto ao lugar em que estava deitado e tenho sorte, pois minhas poucas coisas, que cabem em uma mochila velha e puída, ainda estão lá. Apanho meus pertences e caminho devagar, sem olhar pra trás. Passo pela bolsa e pelo celular no chão, ignorando-os. Estou ciente de que aquela entrará para a conta das noites em claro e ao relento.
Segundo engano. Acerto apenas quanto a passá-la em claro, pois menos de vinte minutos, sou abordado por uma viatura. Os policiais descem empunhando suas armas. Não dizem palavras, antes de um deles me atingir na cabeça com força, usando o cabo de sua arma. Em seguida, sou empurrado ao chão, antes mesmo de ser revistado, recebendo um par de algemas tão apertado que tenho a impressão de que, a qualquer movimento brusco, meus punhos serão cortados ou ficarão em carne viva. Com a mesma gentileza, um deles me levanta do chão e me joga com truculência na parte de trás da viatura. Mal fecham a parte em que estou e a viatura sai cantando pneus. Nesse momento as duas vozes da minha consciência retornam. Uma aplaude a minha burrice e está mortalmente arrependida e a outra, essa se encontra satisfeita com o que me resta de humanidade. Ela não me parabeniza pela atitude, nem chama de heroico o meu ato, essa voz só consegue pensar no estado da mulher.
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Um Abrigo para o Coração (Degustação)
RomanceÀs vezes tudo o que desejamos é alguém que nos salve. Às vezes, tudo o que buscamos é o perdão de nossas faltas. Mas sempre precisamos de um abrigo seguro paras os nossos corações. Marina Ele tinha os olhos castanhos mais tristes que consi...