Capítulo 1

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Mais uma vez na igreja,  sinto a dureza da madeira do banco me causando pequenas lesões, ouço as palavras que reverberam nas paredes ásperas, palavras libertas dos lábios do pastor e dos lábios hipócritas de certas pessoas que me circundam, hoje em dia me contento com isso, mas antes minhas ambições e realizações iam muito além. Vivi muitas aventuras, tive muitas conversas inspiradoras e respirei diferentes ares, tudo isto de um ponto de vista que a maioria das pessoas não se permite entender.

À exatos 80 anos, dois jovens muito caretas compartilhavam de um amor inexplicável sem nem sequer imaginar que o fruto deste amor estava a caminho. Era uma gravidez não planejada bastante comum para época (~anos 90), repleta de desejos, enjoos e preocupações financeiras. Meu pai não estava nem um pouco preparado para aquela loucura e como qualquer pai principiante corria pela madrugada para comprar as comidas que minha mãe desejava e arcava com as consequências do "erro" que havia cometido. Um clichê comum que inicia muitas histórias, mas que não deixa de ser singular para quem vive.

Na calada da noite, passados uns setes meses de gravidez, os gritos da minha mãe ecoaram pela casa inteira quebrando a frágil calmaria noturna e o sono do meu pai, que saltou da cama ao entender o que estava acontecendo, depressa os dois pegaram o necessário (ou quase), e se dirigiram ao carro, meu pai guiava a minha mãe pelo braço com tanta ansiedade que daria para jurar que ele que teria o bebê, e essa mesma ansiedade fez com que ultrapassasse sinais vermelhos e limites de velocidade de modo que o maior milagre naquela noite não foi o do meu nascimento e sim o fato de chegarmos vivos no hospital. Depois da corrida eu nasci e fui recebido com carinho pelos meus pais, em seguida me puseram naquela incubadora e eu senti por 3 meses o calor não reconfortante de uma máquina que, apesar de me manter vivo, não era acolhedora como um leito de braços humanos familiares. 

Após sair da incubadora tudo estava perfeito, isso até realizarem em mim os testes que todo recém nascido precisa fazer, e um deles foi o suficiente para tornar minha chegada ainda mais "especial", este era o teste do olhinho que acusou uma má formação no fundo do olho. Descobrir minha cegueira foi um choque imenso, eu sentia lágrimas salgadas caírem em minha pele frágil. Ironicamente, desde essa data, me disseram o quanto era admirável a beleza dos meus olhos, e eu preferi tomar isto como realidade.

A partir da notificação dos médicos tudo mudou, revelaram-se contradições entre meus pais e suas famílias, que logo se tornou um conflito entre os que me superprotegiam e os que rejeitavam. Meu pai apresentou um impressionante lado agressivo que nunca ousou revelar. Minha mãe foi o meu porto seguro desde então, ela sabia conviver muito bem com todo tipo de pessoas e com insistência soube conviver muito bem com minha condição, ela me compreendia e sabia sempre a chave de palavras que abriria meu sorriso em cada momento. Mesmo considerando todos perrengues que sofri logo no início da vida, ainda acho que foi uma fase muito boa, afinal o início da vida é igual para todos, ninguém enxerga bem logo de cara.

Uma das maneiras mais lindas de perceber o mundo em minha volta sempre foi através dos sons, eles sempre me ajudaram a sentir o carinho da fala da minha mãe e a frieza na fala do meu pai, muitas vezes ainda implícita, e a música congelava meu pranto me fazendo viajar nas melodias.

A propósito, meu nome é Sandro, bem simples. Minha dimensão ainda não estava sendo formada, pois eu não tinha bases ou experiências para isso, minha mente não era palco para muitos pensamentos, entretanto ainda era envolvida por um grande vazio onde ecoavam os belos ritmos que eu ouvia. 

Rapidamente passaram-se dois anos, eu tive uma festa de aniversário muito divertida e depois saí de carro com minha família, em minha mão eu levava uns três balões, o passeio estava tranquilo, até que eu me distraí e acabei soltando os balões que foram parar na frente da minha tia, que estava no volante, e ela perdeu o controle do velho carro e batemos em cheio numa árvore, o impacto foi tão grande que o para-choque do carro abraçou o tronco retorcido. Ouvindo o solavanco dos corpos, o estilhaçar do para-brisa e o voo da morte nas redondezas, aprendi que os sons, além de reconfortantes, podem ser assustadores. O cheiro de sangue e a textura de cacos de vidro me fizeram entrar em desespero, felizmente o socorro não tardou a chegar, ouvi gritos e, apesar de ser uma criança, entendi pela conversa melancólica das pessoas em volta que minhas tias estavam muito feridas e minha avó estava morta, meus pais chegaram logo ao local, minha mãe por não me ver de imediato naturalmente pensou que eu estivesse morto, o nervosismo foi tanto que ela quase perdeu meu irmão, que nem sequer sabíamos que estava a caminho, meu pai ficou muito abalado pela morte de sua mãe, uma dor insuportável.

Minha família demorou para esquecer essa mancha no destino, e eu jamais esqueci. De repente todos decidiram que a família era muito importante e quando isso aconteceu as reuniões familiares se intensificaram, demorou muito para tatear tantos rostos, estava constantemente cercado de gente, minha mãe falou que eu vivia com as bochechas vermelhas, porém eu só sentia a dor dos apertos que davam na minha bochecha, ter um rosto fofo era uma maldição, mas afinal o que é vermelho??? Isso nunca vou saber, tampouco vou me torturar por isso.

Naquele mesmo ano eu entrei na escola, era bem chato, ainda mais para mim, meus pais disseram ser necessário ir aquele lugar todo santo dia e eu aceitei mesmo não sendo compreendido lá, minha infância caminhou assim, uma família superprotetora e uma escola nada acolhedora.

Não sei porque fui escolhido para passar por tanta coisa tão cedo, mas tento ter esperança, minha presunção é de que a vida é como uma máquina cujas peças, as mais importantes são as que sofrem mais desgaste.

Minha Dimensão InvisívelOnde histórias criam vida. Descubra agora