II Um bom homem

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A luz do dia invadiu o quarto quando Abiel abriu a janela. As palavras de Válber ecoaram na sua mente por toda a noite e tinha achado muito difícil pregar o olho.

"Assumiu um filho que não era seu".

Era filho de quem então? Por que não tinham lhe contado a verdade?

Sabia que os únicos que podiam dar essas respostas eram a mãe e o avô, mas na no dia anterior sua curiosidade fora suplantada pela mágoa e ele não quisera ouvi-los.

Tinha acabado de perder o pai, e descobria que ele não era seu pai verdadeiro. De certa forma, sentia-se como se o tivesse perdido duas vezes.

O garoto afastou um vasinho de flor sem o menor cuidado para o lado e montou guarda no parapeito da janela. Dali podia enxergar a estrada e quando viu que o avô saiu para o trabalho e o irmãozinho para a escola, foi até a cozinha. Sua mãe estava à mesa e o café ainda estava posto.

Passou reto por ela, e encostando-se contra o batente da porta, deixou seus olhos recaírem sobre o fogão de lenha em um cômodo do lado de fora. As madeiras já tinham se tornado cinza, e o bule em que a mãe fizera o café pendia inerte do suporte. Sem querer olhar para ela, perguntou, de costas:

— É verdade? — intimamente torceu por uma negativa.

— É.

Os olhos saltaram para o quintal, e ainda buscando apoio se fixaram no chão. As galinhas disputavam os farelos de milho que o irmãozinho devia ter jogado antes de sair.

— Porque não me disseram? — perguntou ainda teimando em não se virar.

— Não havia motivos para isso — Cassandra tirou os olhos do filho e os baixou, envergonhada e triste.

— Todo mundo sabia, menos eu! — Abiel girou, a fúria tomando conta de si. Sem se dar conta caminhou até a mãe e apoiou as mãos na mesa, abaixando-se para que seu rosto ficasse da mesma altura que o dela, que estava sentada.

— Como assim não havia motivos?

Sua mãe manteve-se em silêncio e ele perguntou bruscamente, as palavras saindo num atropelo.

— Quem é o meu pai então?

— Eu não sei — ela disse.

— Não sabe?! — o garoto abriu os braços. — Você trabalhava no Charme?

O tapa atingiu seu rosto em cheio, fazendo o local marcado pela mão de Cassandra latejar. As lágrimas de indignação e dor encheram os olhos de Abiel, enquanto massageava a bochecha.

— Você não tem esse direito! — a mãe disse, tremendo.

— Tenho sim, você me escondeu a verdade. Eu tenho o direito de pensar o que eu quiser.

— Você não é mais uma criança, mas se me insultar mais uma vez eu vou te bater de novo. Agora, fique quieto e me escute, se é que você quer saber a verdade, senão pode sair.

Abiel baixou os olhos e se sentou. Antes de voltar a falar Cassandra colocou sua cadeira de frente para a dele.

— Eu conheci o Adimitri em Lebas há dezessete anos atrás — disse. — Seu navio atracou no porto e ele e um amigo saíram para explorar a cidade e me encontraram.

— Te encontraram? — Abiel perguntou e ergueu a cabeça.

— Exatamente. Eu estava caída em uma estrada, à beira da morte e com você em meus braços.

Sua mãe parou de falar, talvez esperando que ele tivesse alguma coisa a dizer, mas ele não tinha. E depois disso ela prosseguiu até o fim, sem que o garoto a interrompesse ou encontrasse o que dizer.

Os deuses de Anwar, A lenda de Abiel (EM REVISÃO - PAUSADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora