Trinta

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CAÍQUE NARRANDO:

Ele ia matá-la e eu era apenas uma criança inútil sem nada poder fazer. Seus olhos estavam vermelhos como chamas. Ele segurava no pescoço da Madu, prensando-a contra parede. Eu tentei defendê-la, indo para cima do cretino, mas Caleu estava possuído por uma força do além e me empurrou contra a escada. Meu pé latejava de dor, uma bola formara-se em volta do meu tornozelo, impedindo-me de andar. Assustado e com dor, meu choro só não era maior que o da Madu. Ela implorava, pedindo que ele a soltasse, mas Caleu só sabia gritar, dizendo coisas grotescas e terríveis. Foi quando ele acertou-a com um soco no rosto que resgatei todas minhas forças para engatinhar até o sofá, onde estava o telefone. A primeira pessoa que veio em minha mente foi o Gustavo, afinal, ele estava a par das brigas de Madu e Caleu.

- Deixe o seu recado após o sinal... - Liguei três vezes seguidas e nas três vezes caiu na caixa postal. Minha última opção era minha mãe, Madu implorou que eu não a chamasse, mas Caleu estava fora de si e eu temia pelo pior.
- Oi, amor. - Ela atendeu no terceiro toque.
- Mamãe... - Disse, com voz de choro.
- O que aconteceu, Caíque? - Perguntou, alterando o tom da voz.
- Eu caí da escada, mãe. Acho que quebrei meu pé... Tá doendo demais.
- Como isso aconteceu, Caíque? Que gritaria é essa no fundo? - Eu não queria contar-lhe a bomba pelo telefone, afinal fora ela própria que me ensinara que notícia ruim se dá cara a cara. Mas não tinha como eu mentir, não naquela situação. - Cadê sua irmã, filho?
- Eles estão brigando de novo, mamãe. - Deixei meu choro vir com tudo, fazendo-me soluçar. - Ele... Ele vai matar a Madu.
- Meu Deus do céu! - Suspirou fundo, vacilando a voz. - Calma, amor, a mamãe já chega. - Desliguei a chamada, me encolhendo no sofá. A dor no meu pé não era nada comparada a dor de ver minha irmã apanhando daquele verme.
- Alô? - Atendi com a voz de choro, sem olhar o visor do celular.
- O que aconteceu? - Gustavo perguntou, preocupado. Resumi a história o máximo que pude. - Calma, irmãozinho. Eu estou indo pra aí. Não vai acontecer nada com sua irmã!
- Você promete?
- Sim, meu amor. Eu prometo. - Desligou; os gritos e pancadas no andar de cima só aumentavam. Eu me sentia um lixo. Que tipo de irmão eu era? Um inútil qur não podia proteger a irmã.
- PARA COM ISSO, AMOR! - Implorou, Madu, descendo as escadas. De algum jeito, ela conseguiu se desvencilhar de Caleu. - Eu preciso vê-lo! Caíque?! - Antes que ela pudesse chegar em mim, Caleu a alcançou, empurrando-a contra o chão. Ele montou em cima dela, desferindo-lhe tapas no rosto. Foi quando mamãe chegou... Ela pegou um dos jarros que tinha na estante e o quebrou na cabeça de Caleu, que caiu para o lado, desacordado.
- QUE PORRA É ESSA, MARIA EDUARDA? - Mamãe perguntou, ajudando Madu a se levantar. Ela estava com vários roxos e arranhões pelo corpo, com o rosto todo inchado e o cabelo cheio de nó. - Caíque?
- Aqui. - Respondi, soluçando; Gustavo chegou, correndo até mim. O encontro dos meus olhos com os seus foi o suficiente para eu desabar de novo. Gustavo sentou-se no sofá, puxando-me com cuidado para seu colo, onde escondi meu rosto em sua camisa.

GUSTAVO NARRANDO:

Aquilo era demais pra mim. Se não fosse pelo Caíque em meu colo, eu estaria murrando a cara do Caleu. Maria Eduarda ganhou o prêmio de sonsa do ano. Afinal, só sendo sonsa para poder deixar a situação chegar onde chegou. Um drogado só irá largar o vício se de fato ele quiser. O que não era o caso do Caleu.

- QUANTAS VEZES EU PEDI PRA TU NÃO SE ENVOLVER COM NÓIA, MARIA EDUARDA? - Tia Alessandra gritava exasperada com Madu. Ela merecia! Só tomando no cu para largar de ser trouxa. Caíque estava machucado por sua culpa e isso eu nunca iria perdoar. - Por Deus! - Respirou fundo, antes de prosseguir; Madu estava ajoelhada no chão, com a cabeça escondida entre suas pernas. - Vou levar seu irmão para o hospital... Quando eu chegar quero ver esse verme longe daqui. Minha casa não é lar pra nóia! Aqui ele não entra mais.
- Não tia! - Interferi; Eu cometeria alguma atrocidade caso eu ficasse à sós com Madu e Caleu. - Eu levo ele, tia. A Madu não está em condições de colocar o Caleu pra fora. - Depois de muito argumentar, tia Alessandra acabou concordando. Ela me entregou a chave do carro da filha e os documentos do Caíque. - Preciso tirar uma carta logo. - Comentei, ao mesmo que ajeitava Caíque no banco de trás.
- A Madu não precisa ir ao hospital? - Perguntou, com voz de choro, fazendo meu coração partir em pedaços.
- Não, irmãozinho. - De um psiquiatra, quem sabe. - Ela vai ficar bem. Sua mãe irá cuidar dela. - Tia Alessandra dissera que o hospital do convênio mais próximo ficava no bairro do Santa Cecília. Era pouco mais de 17h, e se nós fôssemos para o centro de São Paulo, nós ficaríamos presos no trânsito até às 20h. Como não sabíamos se Caíque havia quebrado algum osso, ou se tinha apenas torcido o tornozelo, nós não podíamos perder tempo. Assim, concordamos que eu o levasse na clínica de pronto atendimento que também atendia o convênio e não era muito longe dali. - Está doendo?
- Sim... Mas eu sou forte. Aguento a dor. - Disse, arrancando-me um sorriso; em 10 minutos chegamos na clínica. Estacionei o carro e peguei Caíque no colo. - Eu sei que você é forte... Mas não perca o equilíbrio comigo, Gustavo. Pelo amor de Deus. - Pediu, apreensivo, o que me fez rir.
- Relaxa! - Com cuidado, caminhei até a recepção, tirando uma senha. Haviam duas pessoas em nossa frente, logo, não demorou muito para sermos atendidos. A recepcionista pediu os documentos do Caíque, perguntou o que ele tinha e entregou-me uma folha para assinar. O caso dele era ortopedia e por sorte havia uma ortopedista na clínica. Fomos para o segundo andar, onde depois de quase meia hora a médica chamou pelo Caíque.
- Hm, o que aconteceu, homenzinho? - A doutora perguntou, toda simpática; Caíque estava com a cara fechada, com um bico do tamanho do mundo. Apesar de não reclamar, era nítido que ele estava sentindo dor.
- Ele caiu da escada. - Respondi, apreensivo; A doutora pediu que eu o deitasse na maca, para poder examiná-lo.
- Vou cuidar de você, Caíque. - Ela disse, começando a examiná-lo. Caíque ficou todo, todo... A médica era bonita e estava sendo simpática com ele, logo, ele permitiu-se a sorrir. - Vou pedir um raio x para sabermos se o mocinho quebrou algo. Fora o pé, tem mais algum lugar que você sinta dor?
- Aqui. - Ele respondeu, colocando a mão na cintura; a doutora pediu licença para erguer sua blusa. Caíque estava com alguns arranhões e com a pele vermelha, um pouco inchada.
- Isso foi pela queda, neném.
- Vou ter que tomar injeção? - Perguntou, hesitante, fazendo tanto eu quanto a médica o olhar com piedade.
- Uma picadinha só. - Ela respondeu, alisando suas bochechas.
- Tudo bem... - Respirou fundo, olhando para baixo. - Eu sou forte. - Disse convicto, fazendo-nos sorrir.
- Sim, neném. Você é. - A médica entregou-me duas vias: uma para medicação e a outra para o raio x. Fomos até a enfermaria, onde todas as enfermeiras ficaram caídinhas pelo Caíque.
- Se criança você já é assim, imagina daqui à alguns anos...
- Provavelmente serei mais pegador que você. - Respondeu, orgulhoso.
- Não duvido. - Respondi, rindo.
- Caíque Lafaiete de Godói. - A enfermeira chamou; Caíque empalideu-se na hora.
- Você é forte, Caíque. - Lembrei, pegando-o no colo; Entramos na sala de medicação e logo a enfermeira fechou a cortina.
- Onde é a picada, moça?
- No seu bumbum. - A enfermeira respondeu. - Mas é só uma picadinha boba que irá aliviar suas dores, lindinho. Ele é alérgico a alguma medicação? - Perguntou pra mim.
- Não. - Respondi.
- Sai daqui, Gustavo. Não quero que você veja minha bunda.
- E quem vai te segurar? - Perguntei, contendo o riso. A enfermeira, por sua vez, deu risada.
- Eu me viro, Gustavo. - Respondeu, revirando os olhos.
- Tá bem. - Deixei-o ajoelhado em cima da cadeira e saí. Um minuto depois e a enfermeira pediu para que eu o pegasse. - Pela sua cara vejo que doeu. - Seus olhos estavam marejados e sua pele corada.
- Um pouco. - Pigarreou. - E esse raio x dói?
- Não... Mas a radiação pode te transformar num mutante.
- Eu sou criança, Gustavo. Não sou burro. - Disse, de braços cruzados. Peguei-o no colo e fomos para a sala do raio x.
- Tô falando sério... Vai que tu vira o Wolverine. - Caíque limitou-se a revirar os olhos; dessa vez quem nos atendeu foi um enfermeiro. Posicionei-o na maca e saí da sala, retornando depois de alguns minutos. - Doeu?
- Não... Mas quero ir pra casa. Tô preocupado com a Madu.
- Ela está bem. - Afirmei, pegando-o no colo. Retornamos ao segundo andar e a médica não demorou a chamá-lo.
- Sente-se melhor, príncipe?
- Sim... Mas ainda dói um pouco.
- É normal, você torceu o tornozelo. Mas não quebrou nenhum osso, então sua recuperação será rápida.
- Graças à Deus! - Agradeci; Seria sofrimento demais vê-lo com a perna engessada por quase dois meses.
- Mas você precisa me prometer que irá ficar de repouso e tomar a medicação na hora certa.
- In-injeção outra vez? - Dessa vez eu não consegui conter a risada. A doutora me acompanhou, rindo também.
- Não, neném. Serão só comprimidos. - Caíque sorriu, aliviado.
- Mas o que a senhora quis dizer com repouso?
- Sem esforços físicos, Caíque. - Respondi.
- Exatamente. - A doutora confirmou. - Fique pelo menos uma semana com o pé pra cima, isso será fundamental em sua recuperação.
- Ficar com os pés pra cima é não andar? - Insistiu; a sorte dele é que a médica era gentil e não parecia se importar com tantas perguntas. Pelo contrário... Ela estava encantada pelo menino.
- Sim, neném.
- Que droga! - Cruzou os braços, fazendo bico. - Como iremos acampar agora, Gustavo? - E novamente caímos na risada.

Inconfesso desejoOnde histórias criam vida. Descubra agora