.Final. (Bom)

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Ao chegar no silencioso local e virar a chave, fui recebido por um cheiro de velas e incensos afrodisíacos.
De alguma maneira, senti como as trevas não existissem e estivesse retornando a minha casa com minha esposa.
O interior não estava desarrumado como tudo estava na cidade.
Tudo estava arrumado com linda ordem, tanto na cozinha com panelas no fogão, como na sala, confortavelmente iluminada e com móveis virados para uma televisão desligada.
E dali mesmo ela surgiu.
Não estava mais sombria, assustadora ou cheia de escuridão como costumava aparecer.
Com um curto vestido preto, sorriu com o rosto iluminado pra mim e cruzou os seus dedos uns nos outros, como sempre fazia.
- Eu fico feliz que você chegou querido. - Ela disse.
- O que é isso? - Perguntei. - O que você quer agora?
Mercy não fez nada aparecer ou jogou-me em outro lugar, somente olhou com orgulho pra mim.
- Acabou, fique calmo. - Continuou. - Você fez tudo como esperei, sentiu o ódio mais intenso que podia e se satisfez com sofrimento. Você é o pilar de tudo, meu amor, e sustentou tudo.
- Chega de enigmas! - Gritei, avançando um passo com a arma carregada na mão. - Você não é mais minha esposa!
- Ah, eu sou sim. - Mercy aproximar-se, colocando minha mão em seu rosto. - Vê? Eu sou real, apesar de só existir em Silent Hill. De qualquer maneira, eu ainda te amo.
- Você tentou me matar. Eu sei que você fez tudo isso! - A empurrei, apesar de não fazer muito efeito. - Esse seu... feitiço satânico matou gente! Você nunca faria isso!
- Eu tive que fazer. - Mercy retrucou.
- Você me traiu. Você mentiu e se afundou nessa porcaria de Ordem. - Eu disse, furioso.
- Tudo para o ódio se formar nesse coração que a mim pertence, e a mim apenas. - Mercy disse, com normalidade. - Eu quero lhe entregar o mundo, e você pode ainda não entender como funciona, mas do fogo e das cinzas o nosso Paraíso surgirá. Eu sei disso Jack, e quero você comigo.
- Eu não vou fazer parte disso. Isso é nojento e egoísta. - Disse, com maior convicção que encontrei. - Como algo nascido do ódio pode criar um Paraíso? É besteira.
- Pessoas felizes podem ser tão cruéis, meu amor. Você ainda não entende. - Mercy sentou-se num dos braços de um sofá. - Quer uma revelação então? Eu te digo.
- Se for me ludibriar com mentiras sobre aquele porra do Haziel, se poupe. Eu explodi o seu cérebro depois que você ajudou, não é? - Eu disse, mesmo sem ter uma certeza absoluta. - Você, a Mãe de Deus.
Mercy parou, olhando com uma expressão indecifrável para mim, mas logo sorriu.
- Eu mesma, a Mãe de Deus. - Concordou. - Mas não é como imagina. Eu tive que me manifestar de uma forma diferente, além da ignorante e imbecil Alessa Gillespie, eu tinha total controle dos meus movimentos.
- Quem era essa garota? - Perguntei.
- Eu não quero falar dela. - Mercy olhou para mim. - É com você que quero falar, meu amor. Venha.
Ela estendeu seus braços e me senti flutuar.
Sem mirar, atirei no ar, num movimento involuntário, e sangue escorreu do braço de minha esposa.
Ela tocou o ferimento, agora preocupada.
- Diga. - Eu disse, fingindo não estar preocupado.
Ela se deteve alguns minutos antes de responder.
- Ela era a antiga escolhida a ser Mãe de Deus. - Mercy explicou, desconfortável como se competisse com a outra. - Sua mãe, Dhalia, a ofereceu para Deus nascer. Nosso Senhor, porém, precisa de ódio para nascer; ser alimentado com esse forte sentimento até estar tão forte quanto está agora. Alessa começou a desistir de querer gerar Deus e chegou a dar fim a duas encarnações Dele.
- Meu Deus, mas no que você se envolveu... - Eu puxei a foto que encontrei na lanchonete. - Essa é ela?
- Sim. - Mercy estendeu a mão e a foto voou até ela. - Esta oração foi a bruxaria que Dhalia usou para mantê-la viva durante uma série de torturas.
- Ela era um monstro. - Eu não consegui controlar as lágrimas e recuei, horrorizado. - Assim como você. Você é uma bruxa.
- Isso não é uma ofensa. - Mercy suspirou, como se não quisesse que a conversa chegasse naquele ponto. - E eu fiz o que tinha de fazer, meu amor. Para nós. Nós podemos ficar juntos agora.
- Onde está a Kay? - Perguntei de súbito. - Você a matou. Eu sei disso.
- Ela já estava morta a muito tempo. - Mercy olhava fixamente para mim, sem dó. - Você não percebeu isso.
Eu joguei a arma no chão e gritei, indignado, com raiva e desapontamento.
Não era para ela ser assim.
Não era para sermos assim.
Por que ela fez isso comigo?
Fechei os olhos para não ter q mira-la.
- Mas não perca a esperança. - Mercy se projetou a minha frente. - Eu tenho notícias bem melhores que suas tragédias para você. Você fez tudo que queria, meu amor. Você descobriu a Ordem, conheceu o Deus e matou o infeliz do Haziel. Estamos livres.
- Você ainda quer que eu viva com você? Nesse inferno nojento? - Eu neguei. - Nunca!
- Eu disse que faria um Paraíso. - Mercy disse. - A destruição que te mostrei servia para aumentar sua dor e seu ódio. Agora eu posso te mostrar outras coisas. Venha.
Ela agarrou minha mão, e por mais que quisesse empurra-la e mata-la como Haziel, já devia estar enfeitiçado.
- O Deus nunca teve um pai, mas talvez caminhos alternativos guiem ao sucesso. - Disse Mercy, levando-me até a janela. - E enquanto eu sou o sol, poderei oferecer o luar para você.
Não acreditei nos meus olhos.
Apesar de não ir até a sacada, o Lago Toluca me jogava um ar fresco e calmo, junto com uma brisa simplesmente maravilhosa.
Pássaros noturnos passavam acima da lua refletida na água, sem nenhum vestígio da neblina.
O ar de morte se fora.
- Viu? Eu não sou um monstro, eu sou a Mercy. - Ela segurou o meu rosto. - Eu não mudei, meu amor, eu só tomei decisões para nós. Me ajude agora.
Eu não havia acreditado em uma palavra, mas eu a amava.
Sentia ódio e repulsa por esse sentimento, mas não consegui me livrar de suas mãos leves a me acariciar e seus lábios que logo me beijaram.
Ela me arrastou, sem soltar-se dos meus beijos e me jogou em uma larga cama no quarto.
Eu não resisti, enfeitiçado, e me entreguei.
Beijei-a e senti todo seu corpo como se fosse a primeira vez que estivéssemos sozinhos e livres.

*  *  *

Eu me sentia leve.
Ao acordar na manhã seguinte, como se nunca dormisse há meses, não consegui me situar logo de cara.
A minha arma tinha sumido, o óleo branco estava ao meu lado, destampado, e eu estava nu.
Com horror, vi os cobertores brancos da cama manchados com sangue fresco e logo pensei que havia matado minha mulher.
Um misto de alívio e culpa me atingiu, mas como o sol brilhava lá fora, achei que estava livre de Silent Hill.
Vesti a primeira roupa que encontrei, um lindo termo preto, o que já me tirou do clima animado.
Ao sair do quarto, senti meu coração parar.
Mercy estava lá ainda, viva e com a melhor expressão que já tivera.
Estava sentada em pé ao lado da sacada, balançando um pequeno embolorado de panos.
Era um bebê.
Minhas pernas bambearam e senti que ia cair.
- Jack. - Mercy sorriu, ao me perceber. - Venha ver. Ele é lindo.
Eu me aproximei, com medo.
Pensava que ela ia derruba-lo como o bebê terrível da estrada, mas ela me entregou.
Seu rosto era lindo, tão claro quanto o sol.
O olho era da mãe, e havia algo meu ali sim.
A cor de sua pele era viva e seus pequenos braços eram fortes.
Parecia mais desenvolvido que eu.
Mercy sorriu para mim.
- Eu sabia que você me ajudaria, meu amor. - Ela disse, e me beijou.
Eu também a beijei.
Da janela, eu podia ver a cidade do outro lado do Lago Toluca, brilhando ao sol.
Mas ela brilhava mais que um simples brilho.
Estava queimando.
Literalmente em chamas.
Fogo extinguia tudo, levava tudo.
Logo as labaredas chegariam a esse lado da cidade.
Mas não me importava mais.
Eu me sentia tão bem...
Estava ali com Mercy de novo. Minha Mercy.
Eu não deixaria isso por nada.
Eu era o Pai de Deus, e esse era o nosso Paraíso.

Silent Hill : SacrifícioOnde histórias criam vida. Descubra agora