A Pizza

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Gelo no beiço e olhos inchados pelo spray de pimenta. Essa foi outra noite horrível. Não deu meia depois que anoiteceu e a polícia foi embora. Estouraram rojões no nosso quintal. O Dani só chorava agarrado aos próprios joelhos. Eu não entendia nada Eu nunca entendo nada. "A polícia não entrou em casa?" "Não. Não tinham mandato". Fred respondeu e depois continuou "melhor tirar tudo de ilegal que tem nessa casa, ?" "Eu já tirei" balbuciou Paçoca enquanto arrancava pedaço das unhas e as cuspia em um canto. Seus olhos estavam vidrados. Certo é que em sua mente passava um filme do que teria acontecido se a polícia entrasse em casa. "Vou deixar meu computador na sua casa, Maitê." Trocamos olhares sem entender o porquê daquilo. Maitê acenou positivamente enquanto afagava a cabeça do Danilinho, que tremia. Paçoca ainda se explicou "não posso correr o risco". Risco? Que risco?

Que o Paçoca era estranho todo mundo sabia. Olhava para os lados de um jeito desconfiado, quase sem mexer a cabeça. Sempre. Roía as unhas e sentava com os pés sobre a cadeira. Mordia os joelhos irrequieto olhando para o seu computador. Olhava para cima e digitava sem ver o que fazia. Parava de novo. Repetia o processo. Ninguém sabia a idade dele. Ninguém sabia sobre o seu passado, nem o que fazia da vida. Ele já morava na república. Aliás, era o mais velho de nós aqui dentro. Eu entrei. Depois vieram o Fred e o Dani.

Andava meio encurvado com molas nos pés, mãos nos bolsos do agasalho que sempre usava fosse frio ou calor. Falava pouco. Sempre bem baixo. Ficava o tempo todo no computador. Headset na cabeça e olhos grudados na tela. Passava o tempo todo em jogos e fóruns. De manhã, ficava no celular, sentado no sofá, cabeça baixa, enfiado na tela do aparelho. Quando tinha que conversar com alguém, ia até os fundos. Quando a gente perguntava o que ele estava fazendo ele dizia: trabalhando. Beleza então. Se estava de bobeira na sala, vendo algo na televisão e a gente perguntava algo ele desconversava, dizia que tinha que trabalhar e ia para o computador. Que trabalho era esse? Só sei que sempre pagava as contas em dia. Sempre ajudava na grana da comida. E na erva.

Batem no portão. Pizza. "Quem pediu pizza?" Betão. Pelo celular. Bom. Já estava pago. Melhor. Mas eu não aguento mais pizza. Fui buscar. Pelo menos a rua estava calma. Picharam a calçada da casa. Escreveram "Psicopata". Voltei com as duas caixas. Joguei na mesa. Os pedaços foram desaparecendo. Betão deu um beijo no rosto do Fred pegou uma fatia e se foi.

Betão... apaixonado pelo Fred. Cedia a todas as vontades do cara. Também pouco falava com a gente. Vivia aos sussurros com o affair, cabeça no ombro dele, um sorriso no rosto. Fred olhava para cima, mordia os lábios e também sorria. Sussurrava algo de volta. Betão só se empolgava para contar suas aventuras em duas rodas, uma perna e sua prótese. Ter feito trilhas no meio do cerrado, maratonas internacionais, triátlon em diversas partes do globo. Ele era bastante respeitado na cidade. Aí ele falava, gesticulava. Como se palestrasse, tipo superação. Mas isso quando o clima está legal. Com o clima bosta destes dias não ouvi ele falar nada. Só sussurrar no ouvido do Fred. E sem direito a sorrisos e olhares brilhantes.

Devorávamos as pizzas e o pensamento que rondava as cabeças deviam ser os mesmos: como um corpo some do seu túmulo e ninguém tem ideia do que aconteceu? Sem deixar pistas. Sem deixar rastros. Como assim? A gente nem tinha parado para pensar no que levou a morte da moça, nem superado aquele velório triste e já estávamos preocupados com a violação do que seria a última morada da Gabi. Não dava para entender.

Ficamos um tempão em silêncio, digerindo a pizza, digerindo a morte, digerindo o sumiço do corpo, o quase linchamento. Olhei para Maitê, ela estava irriquieta. Linda e irriquieta. Lembrei do beijo que roubei da Bruna. Me senti meio culpado. Maitê se levantou do sofá. Pôs o dedo em riste a frente do próprio nariz, como se quisesse tirar de dentro de si uma dúvida "Quem será que publicou aquela notícia? Que coisa mais irresponsável!" Fred olhou para mim, olhou para cima, ele sempre fazia isso, coçou a cabeça e respondeu cabisbaixo, quase que para si "Foi a Jacque!"

Bem, vou refrescar a sua memória. O Fred saí com o Betão. Mas também tem o namorico com a Jacque, da faculdade de jornalismo, os dois fazem jornalismo, ele ano passado e ela está terminando. Até aí beleza. Ela não apareceu aqui esses dias. E o Fred também não foi para a faculdade com toda essa tragédia. Só que ela é estagiária no portal de notícias da cidade no qual saiu a notícia. Aquele que jogou a cara do Dani na internet junto com o túmulo da Gabi todo estourado. Ela conhece a gente, conhece o Dani, conhecia a Gabi, a morte da Gabi foi bastante comentada e... "A Jacque me viu com o Betão no velório. Viu ele me dando um beijo no rosto. Nem entrou. Mas me mandou uma foto que tirou de nós dois, estávamos de costas, ele me abraçando. Tão fofo. Tinha muito ódio naquela mensagem".

Danilinho absorvia as palavras e quanto mais ouvia, mais franzia a testa, contorcia a boca, respiração mais agressiva, tipo touro de desenhos animados prestes a acertar um toureiro. Até que explodiu. Subiu no sofá como se quisesse ficar mais alto do que realmente era e abriu os braços, gesticulando, socando o ar. "Foi ela! Violou o túmulo da Gabi! Só para se vingar de você! Me fodendo! Essa garota é maluca? Liga pra ela agora, Fred! Liga pra ela!" "Eu já liguei. Liguei assim que vi a notícia. Já me expliquei. Ela me xingou, mas disse que não fez por mal, disse que iria tirar a notícia. resolvido." "Ela não colocou a notícia ela é responsável pela notícia, ela zoou a porra do túmulo todo e sumiu com a Gabi" Danilinho, o nanico, parecia um gigante em fúria. Fred, com seu um metro e noventa e dois parecia um anão. "Imagina cara. Como ela faria um negócio desses. Não tem o menor cabimento. E outra. Você que ficou lá ao lado do túmulo até o cemitério fechar. E depois que fechou, você pulou lá dentro de novo! Você é maluco? Ela disse que o guarda do cemitério viu você saindo, pulando o muro de novo".

Eu nem sabia disso. Maitê olhava apreensiva para todos nós. O Paçoca nem piscava. Estava no terceiro pedaço de pizza, vendo o desenrolar da história. "Que história é essa, Dani?" Eu também queria saber. Já era tarde. Maior clima bosta. Olhei para o jarro na estante. Odiei-o com todas as forças. E eu nem sabia o porquê.

Dani escorregou no sofá, enterrando as costas no acento. Suspirou. Fred arfava. Cara fechada. O pequeno viúvo (não sei que nome dá quando é só namoro) se explica "Eu precisava me despedir dela, falar para ela tudo que eu sentia. Sozinho. Precisa confessar para ela as minhas pequenas mentiras e deslizes. Contei tudo. Foi um alívio. Precisava contar para ela dos meus sonhos junto a ela. Dizer o quanto amava e o quanto eu iria sentir a falta dela. Eu... acabei dormindo, sentado ao lado do túmulo, coberto pelas coroas de flores. Quando me liguei, já era tarde. Saí correndo do cemitério. Pulei o muro e vim para casa".

Eis que Paçoca se levanta. Joga na caixa vazia um pedaço da borda de pizza. Vem até o meio da sala e aponta o dedo na cara do Dani. "Você tá arrependido?" Dani meneia a cabeça, sem entender. Mexe as sobrancelhas. Olhei para o rosto da Maitê, lavado de lágrimas. Olhei para o Fred, que apenas ergueu os ombros sem entender nada. Eu mesmo não entendi. E estava em choque "Você arrependido de ter matado ela?" "Como é que é?"

Outra vez a casa ficou salpicada de sangue que agora jorrou do nariz do Paçoca. Não deixou barato e também foi para cima. Engalfinharam no chão, trocando socos de forma desordenada, batendo nos móveis e na gente. É bem difícil narrar uma briga enquanto se tenta apartar os brigões. E enquanto uma garota grita e chora esperando que eles parem. Eu segurei o Dani e Fred o Paçoca. Estavam lavados no sangue um do outro. "Retire o que você disse! Por um acaso foi você que ajudou a Jacque a sumir com o corpo? Isso é um absurdo! Retire o que você disse!" Danilinho gritava. Paçoca apontava o dedo, vociferando "Foi você sim! Eu tenho certeza! Você é maluco e isso prova que foi você! Não culpe a Jacque. Ela só fez o trabalho dela. Seu assassino! Você deve ter sumido com o corpo dela também! Você matou a Gabi!"

A troca de socos, pontapés e a gritaria dentro de casa impediram que a gente escutasse o barulho do portão se abrindo e os passos no corredor. Quem vive sempre aparece.

MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do JarroOnde histórias criam vida. Descubra agora