A confissão

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Budismo Moderno
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca dextra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Augusto dos Anjos

Gabi olhava no rosto de cada um. Há medo pairando no ar. Eu diria ser possível tocar, dobrar, colocar em uma mochila e levar para outro lugar qualquer, só com bravos e corajosos. Ali eles teriam um adversário à altura. Medo. Gabi mexeu nos cabelos desgrenhados, entortou um pouco a cabeça para ajeitar a musculatura do pescoço, ergueu a sobrancelha algumas vezes, deu umas piscadelas. Provocativa. Difícil encará-la. Uma leve intuição dizia que sobraria para mim...

"A culpa é toda sua João Roberto". "O quê?" Não era apenas intuição. A voz dela saiu bem doce nesse primeiro momento. "Me cortei por culpa sua! Morri por culpa sua! Estou viva por culpa sua! E estou morta por culpa sua!" Nem tanto nesse segundo. Ela ia apontando para as pontas dos dedos rasgados e contando o quanto eu era culpado e aumentando o volume de sua voz gradualmente até o insuportável. Tinha um tom metálico. E pelo jeito, eu era culpado, muito culpado.

Ouvimos o silêncio. Se antes era possível tocar o medo, agora era possível ouvir o silêncio. E era ensurdecedor. "E você, Danilo Augusto, devia ter vergonha nessa sua cara! Porque nem tamanho de homem você tem! Seu bostinha!" Agora tinha um tom maternal pouco usual, como a mamãe demônio falando com o filhinho demônio. Dani olhou para baixo. Para os calcanhares. "E você, bonitona? Devia se envergonhar de se insinuar para quem tem namorado!" Se ela estivesse viva estaria arfando. Narinas abertas e ódio acumulado. Como não estava... Maitê não se acovardou. "Como assim?" "Eu sei que você dava em cima do meu namorado!" "Eu não! Nunca!Jamais daria em cima do seu namorado!" "Não foi o que ele me disse!" Maitê estrangulava mentalmente o Dani. Lágrimas escorrem pelos olhos do rapaz. Aquela lavagem de roupa suja poderia ir longe. "Eu vou contar tudo que aconteceu!"

Gabi sentou-se no sofá, cruzou as pernas e pousou os dedos esfolados e cortados sobre o joelho. Olhava para o nada. Se bem que havia um cinza em seu olhar e pequenas nuvens passavam diante de sua retina. Entortou e desentortou o pescoço, direita e esquerda. Maitê me deu a mão e a apertava com força, quase enfiando as unhas na minha carne. Gabi pigarreou. Tossiu limpando a garganta. Expeliu duas moscas verdes, enormes por sua boca. Pareceu um tanto satisfeita. Uma voou pela porta aberta. Curiosamente, a outra pousou na lateral do jarro na estante sobre a marca da mão impressa com sangue e ainda visível. Ela acompanhou os insetos com o olhar. E começou com a sua voz de sempre,suave, nada metálica.

"Há coisas que não conseguimos explicar. Aquele dia eu e o Dani chegamos aqui e eu vi o jarro caído sobre a mesa. Ele disse que você, João Roberto, tinha acabado de comprá-lo. Achei curioso. Notei o brasão. Perguntei ao Dani se ele sabia de algo. Ele disse que não. Coloquei o jarro em pé. Neste momento algo aconteceu. Como se eu entrasse em uma outra dimensão. Eu pisava sobre cabeças enterradas em um pântano lamacento. As cabeças choravam e gritavam. Muitas me xingavam. Diziam coisas horríveis, sobre mim, sobre o Dani. Diziam que eu era feia, gorda, que eu devia morrer. Que não havia razão alguma para eu continuar viva. Que o Dani não me amava, que os meus amigos zombavam de mim pelas costas". Fez uma pausa. Mexeu nos dedos das mãos. Puxou para si o pé suspenso, depois o fez girar em círculos.

MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do JarroOnde histórias criam vida. Descubra agora