A Fuga

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A luz acesa no interior do ônibus ajudava a notar minha situação: apenas eu e a minha ex-companheira descartável de viagem – caída no meio do corredor – e mais ninguém. Todas as coisas das pessoas estavam lá, bolsas, malas, mochilas, seus proprietários e proprietárias, não. Olhei pela janela de novo. Os faróis dos carros parados e seus pisca-alertas ligados rompiam a névoa tênue e a escuridão.

Debrucei-me para olhar a moça caída ao chão. Sem sinais de respiração. A espuma escorrendo do canto da boca até o queixo somada ao branco dos olhos revirados deixava claro que ela estava morta. Bem morta.

Em uma de suas mãos, um frasco pequeno, sem tampa, de plástico, vazio. Na outra, um pedaço de papel enrolado. Forcei os dedos que seguravam com a firmeza do rigor mortis o pedaço de papel. Uma letra de caligrafia impecável em tinta azul. "Se você encontrou esse recado, desculpe o transtorno. Eu não tinha motivos para viver, apesar de tentar encontrar. Mas desde que fiquei sabendo que criaturas andavam soltas por aí, decidi que não daria a eles o gostinho da minha carne. Sempre ando preparada para esse encontro. Se a comerem, comerão também o veneno que a impregnou. Meu último e grandioso ato de liberdade foi o de desprender as amarras da minha alma desse corpo débil e doente. Não me julgue. Salve sua vida".

Caramba! O que aconteceu? O que eu perdi? A mulher se matou ao meu lado! E eu nem saquei! Cadê todo mundo? Peguei a mochila e desci do ônibus. A noite estava fria. Que horas são? Meu celular! Vinte duas e quinze. Oito por cento de bateria. Sem sinal. Devia ter colocado para carregar antes de sair de casa...

Caminhei vacilando pelos carros. Nunca se sabe. Alguns com portas abertas, vazios. A mesma coisa no sentido oposto da rodovia vicinal. Um ou outro com o som ligado, motor ligado. Que lugar era aquele? Pelo bilhete e pelo cenário dá para saber que houve um ataque. Mas onde é que está todo mundo? Para onde foram?

Adiante, um caminhão tombado no meio da rodovia fechava as duas faixas. Uma série de carros batidos em um engavetamento. No sentido oposto, algo semelhante, mas como se os carros tivessem tentado dar a volta, ou fugir de ré. Fui andando em direção ao caminhão, no sentido que meu ônibus ia. Caminho da casa dos meus pais. Pisei em algo gosmento e quase escorreguei. Acendi a lanterna do celular e vi uma trilha de tripas que saia da parte inferior de um corpo feminino jogado a frente de uma camionete e sumia entre os carros. Contive o susto. Engoli o grito. Estava ficando bom nisso. Fui para o acostamento. E ali vi o cenário de horror. A lanterna iluminou dezenas de corpos jogados no descampado lateral a rodovia. O lugar era cercado por morros cortados no lugar no qual aquele trecho da via foi construído. Não havia para onde fugir.

Sem sinal de criatura alguma. Menos mal. Três por cento de bateria. Bem ruim. Fui até o caminhão. Cinco eixos para cima. Tentou desviar de algo e tombou. Um Chevrolet Cruze cinza estava ligado, vazio. Uma cadeirinha de bebê vazia no banco de trás. Felizmente. Eu acho. Seria ruim ver meio bebê preso a cadeirinha. Meu celular deu adeus e desligou. Entrei no carro, carro de mulher, uma bolsa pequena no banco de passageiros, um perfume doce no cinto de segurança, dei ré, bati no carro de trás, coloquei para frente, desviei de um fusca e acelerei pelo acostamento. Pude mirar mais uma vez os corpos iluminados pelos faróis. Voltei para a rodovia. Cem, duzentos metros à frente, ainda era possível ver corpos inteiros e aos pedaços pelo asfalto. Impossível desviar de todos.

Até que elas invadiram a rodovia! As criaturas. Difícil acreditar que eram humanos! Saíram do inferno. Corriam vindas do acostamento e se jogavam no carro. As pancadas assustavam. Eu só acelerava. Uma entrou na frente do carro, não deu tempo de desviar. Bati. Voou sobre o automóvel. Pelo retrovisor, vi o corpo rolando pelo asfalto.

Nunca fui um exímio motorista, mas o carro, câmbio automático ajudava. Tanque pela metade. Achei o botão certo e liguei o som. Um locutor dizia que a região estava em estado de alerta. A recomendação era evitar sair de casa. Ótimo. Nada é tão ruim que não se possa ter certeza que irá ficar completamente ruim. Passei por uma placa. Estava há uma hora e meia de casa. A voz cessa e um celular começa a tocar no som do carro. Fiquei sem saber o que fazer. O aparelho piscava e vibrava na lateral da bolsa da dona do carro. Na tela, um homem com uma bebê nos braços: "Amor". Apertei um botão para tentar desligar e atendi. Uma voz masculina saía do autofalante do carro. "Michele?! Você está bem? Alô? Volta agora! Alô?! Está me escutando? A bebê está bem? A Lalá está contigo? ALÔ?!" Apertei o mesmo botão e desliguei. Nem quero imaginar o que aconteceu com a Michele e Lalá... uma mãe correndo com sua filha nos braços enquanto aquelas criaturas a perseguiam. Devem estar mortas. Uma lágrima correu pela minha face. 

Desliguei o som e dirigi pela estrada vazia apenas com meus pensamentos, alimentando minhas neuras e revendo minhas incertezas. Quando o mundo virou do avesso? Que tipo de dores as pessoas carregam? Se eu não tivesse dormido tão profundamente, estaria morto. Ou não. Na vida da gente não tem "e se"... Ou você faz ou não faz. E morre sem saber o que aconteceria se tivesse feito. Pensei também no quanto o mundo sabia do que estava acontecendo. Não passei por nenhum bloqueio militar, nem nada assim. Eu não podia ser pego com esse carro. Até explicar tudo... 

Parei o carro a quatro quarteirões da casa dos meus pais. Deixei a chave no contato, o celular na bolsa, peguei minha mochila e caminhei por ruas que haviam mudado muito desde que eu saí daqui. Mesmo a noite, iluminada apenas pela luz dos postes, eu conhecia bem aquele canto da cidade. As ruas vazias traziam lembranças que eu não sabia que existiam. É como se algo preso lá no inconsciente viesse à tona. Via a casa dos antigos colegas. Algumas pichações que eu havia feito, quando ainda era adolescente rebelde, estavam lá. BLERGH! Essa era a minha marca. Um spray inteiro de tinta preta, gasto em uma madrugada, e que ainda podia ser visto no alto de um muro de uma fábrica desativada. Deu um certo orgulho. Mais cem metros e estava em casa.

Parei diante de portão. Não lembrava de quanto tempo fazia que eu não me via parado ali na frente. Saquei a chaves do bolso da calça jeans. Aliás, eu tenho o mesmo jeans desde que ainda morava nessa casa. Os rasgos nele eram mais de uso e história que de estilo.

Quando comecei a mexer no portão, a luz da sala e da garagem se acenderam. Vi um carro igual ao do Betão, novinho. Meu pai tinha trocado de carro. De novo. Nem sabia disso. Ouvi a porta da sala se abrir enquanto eu encostava o portão. Minha mãe, de roupão, mãos na cintura me olhava de cima em baixo. Me vi com doze anos, chegando dez minutos depois do combinado. "Isso são horas de chegar João Roberto? Quer matar a gente de susto? Não tem consideração por ninguém, não?" "Eu também te amo, mãe! Me dá um abraço!" Ela sorriu. Abriu os braços e abraçou. Emoção não controlada. Desabei. Chorei, chorei, chorei. Acho que tudo que aguentei essa semana, botei para fora nesse instante. "Mãe, minha cidade está sendo atacada por umas criaturas, mortos-vivos... E eu... acho que eu sou o culpado..." Olhou nos meus olhos com semblante sério. "E quando você não é o culpado pelas hecatombes que acontecem no mundo, João Roberto?" Ela sorriu de novo. Pegou no meu braço e me conduziu para dentro de casa. "Pode entrar, fique à vontade..." "Essa casa também é minha!" "Mas você não mora mais aqui..." Era o jeito dela me dizer que me ama. Eu acho.

Dou de cara com o brasão pendurado na parede oposta a entrada, em frente a porta da sala. Aquilo me gelou a alma. Abri a mochila e saquei o desenho do jarro e o do brasão. Mostrei para a minha mãe. Ela olhou para o papel, olhou para o brasão na parede, para o desenho do jarro. "Acho que você vai ter que conversar com seu avô. Já ouvi ele falar sobre esse jarro. E não foi nada bom... Mas amanhã. Come alguma coisa, toma banho, dorme. Amanhã a gente vê isso aí".

Nada como estar em casa, na casa dos nossos pais.Agora era torcer para tudo isso ser um pesadelo. Ilusão. Só que não. Quanto mais merda é a vida, mais real ela é. 

MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do JarroOnde histórias criam vida. Descubra agora