A Escuridão

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Estava ali. Frente a frente. Eu e o meu jarro. Aquela peça tão finamente ornamentada era minha. Tomei o jarro em minhas mãos e era, de fato, a primeira vez que eu o tocava, sentia sua frieza metálica, sentia sua textura trabalhada pelo tempo. Queria ver com meus dedos, experimentar seus vincos e traços entalhados.

Algo então começou a acontecer. Sentei diante da mesa, agarrado ao jarro. Uma tristeza profunda se apossou de mim. De onde vinha? Meus olhos se encheram d'água. Era como se todas as crianças mortas em guerras o fossem por minha culpa e isso pesasse em minha consciência. Era o médico que vê a vida de um paciente escapar pelas mãos. A dor da mãe que segura no colo o filho morto.

Meus dedos deslizavam pelo frio metal, passeando ao sabor de seu ornamento. Traços que saiam de sua base, passavam organicamente pela sua parte mais bojuda e morriam no infinito de sua borda superior. Na parte superior, ramos e pequenas folhas e flores delicadamente detalhados incrustavam quase toda a circunferência, juntando-se aos traços e também sumindo junto a bica, perfeitamente detalhada, feita para que o líquido a ser despejado não saísse de maneira calamitosa.

Da tristeza veio a raiva. Queria cortar gargantas. Atropelar pessoas. Metralhar, explodir, jogar bombas em prédios. Vingança, reparação, justiça. Destruir coisas belas, sujar coisas limpas, profanar coisas sagradas. Chorei ainda mais. Meus olhos estavam turvos. Eu soluçava. O metal brilhava ao Sol daquele domingo glorioso. E eu queria a glória do sangue do inimigo escorrendo pelas minhas mãos.

A alça subia da fina e larga em sua base, estreita e opulenta no topo. Mais duas tiras davam ainda mais sustentação. Tinha tantos detalhes e traços, ramos e folhinhas desenhados subindo tal qual trepadeira sobe em um caramanchão. Os traços me trouxeram imediatamente a mente os entalhes em um caixão.

Notei meus dedos, finos, esqueléticos, descarnados. Odiei-os. Nunca havia notado isso. Minhas mãos tremiam. Meu coração batia dentro do meu estômago aos solavancos. Solidão. Uma solidão medonha se apossou de mim. Como se fosse um fio a subir pelos meus dedos, passeasse pelos meus braços, descesse pelas minhas pernas e novamente subisse pelo tórax morrendo no fundo da minha garganta. Iria vomitar. Não vomitei. Antes tivesse vomitado a solidão e aquela dor n'alma fosse embora.

Estava grudado ao jarro. Hipnotizado. Olhei para seu interior. Negro como a noite. Uma escuridão sem fim. Roubava toda a luz. Mirei o interior do jarro na janela por onde a luz do Sol entrava e invadia sem pedir licença todo o ambiente. O jarro a tomava para si e não devolvia absolutamente nada. Era a escuridão de um abismo, a escuridão que só a morte é capaz de trazer a alma. Sim, era assim o interior daquele jarro, a morte e somente a morte. Nada de luz, nada de brilho. Que seja a morte dos desgraçados. Mas aquela era a cor da morte.

Mágoa. Profunda. Como alguém enganado por meio mundo. Traído pelo pior inimigo. Nada pior que a traição de um inimigo. Meus soluços pareciam ecoar pela casa.

Retomei parte da razão. Enfiei minha orelha no jarro. Um zumbido profundo, muito leve circulava por ele. Ouvi o sopro da criação. Ouvia o suspiro após a criação. Não era um eco. Era o ruído do Big-Bang, era o som da primeira brisa que bateu no rosto de Adão. Era o som da morte, após o último suspiro do moribundo. De onde vinham essas ideias? De onde? Como pode alguém reconhecer a cor e o som da morte? Batuquei com meus dedos no jarro. Nenhum som além daquele sopro. Bati mais forte, com os nós dos dedos. Nada. O interior do jarro parecia não ser capaz de devolver o som. Duvidei da existência dos meus dedos. Eu tinha um buraco negro em forma de jarro, engolia a luz e o som de tudo. É claro que essa é uma linda metáfora. Nada melhor para explicar o inexplicável que lindas metáforas.

O jarro era pesado. Agora ele estava a minha frente. Meus braços estendidos para fitar-lhe em toda a sua totalidade. Em toda sua glória. Pesava cada vez mais. Começaram a tremer, meus músculos pareciam que iriam explodir e rasgar a pele. As veias saltavam em minha testa. Fazia cada vez mais força. Um peso descomunal. Suava. Minhas mãos trepidavam, encharcadas. Gotículas salpicavam a mesa, criando micro  poças. Minha fronte estava devastada. A dor do esforço físico descomunal cessou quando larguei o objeto.

O som do jarro caindo. Uma explosão de uma bomba de mil megatons. Não sei como é isso, mas o barulho foi estrondoso. Deslizei pela cadeira, exausto. Não sentia mais nada além do calor ameno daquele domingo outonal. Ainda notei o negrume do interior do jarro tombado, voltado para mim. Um frio percorreu minha espinha.

"Que marca é essa?" "O Quê?" "Que marca é essa, esse símbolo no fundo do jarro?" Danilinho apontava para o jarro com a escova de dentes. Estava do lado oposto da mesa. "Escova os dentes no banheiro, cara" "Faz um tempão que você tá aí olhando para esse troço e não viu essa marca" "Que marca?" Girei o vaso para ver o seu fundo. Foi aí que prendi a respiração. Havia uma insígnia, um emblema, uma espécie de brasão no fundo do jarro. O mesmo que ornamentava a sala da casa dos meus pais.

MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do JarroOnde histórias criam vida. Descubra agora