"Que isso João? Você tá louco? Do que você está falando?" "O mundo tá acabando. Gente morta saindo da tumba. Você não viu o que aconteceu no hospital? Tem um monte de gente que devia estar morta andando por aí e comendo gente. No sentido literal. Eu não poderia morrer sem dizer isso para você. Eu sou louco por você, Maitê! Sempre penso em você! Eu te amo!"
Ela ficou me olhando por cima dos óculos com cara de ontem. Eu ali, cabeça encostada na porta de entrada da sala, um filhotinho de cachorro em um abrigo de animais querendo ser adotado. Olhava para ela tal qual alguém observa uma paisagem rara. Maitê mordeu o lábio inferior. Ajeitou a armação no rosto, baixou a tela do notebook. "Que negócio é esse de gente comendo gente? Que nem a Gabi?" "É. Acho que as vítimas da Gabi, aquelas pessoas que ela mordeu... acho que elas morderam outras pessoas. E essas pessoas saíram por aí mordendo pessoas. Você não assiste TV? Não viu as notícias?"
Ela se levantou e veio em minha direção. Cruzou os braços e me fitou. Indecifrável. A preocupação em meu rosto não lhe causava nada. Contei para ela da festa. A "superfesta". Falei das pessoas mortas, das criaturas nos perseguindo. "Você veio me salvar? Veio me proteger?" Apenas sorri. Ela chegou mais perto. Senti seu perfume. Levou a mão ao meu rosto, acariciando-o. "Ainda bem que está bem". Passou a mão pelo meu queixo. "Que bom que se preocupa comigo". Olhei para a sua boca, um pouco mais de um palmo da minha. Levei minhas mãos até a sua cintura, sentindo o tecido fino que cobria seu corpo. "Obrigado por se preocupar". Havia uma sensualidade em sua voz, uma doçura. Cerrei os olhos, molhei os lábios. É agora. Puxei-a em minha direção, corpo a corpo. É agora!
Com um movimento, se afastou de mim, protegendo-se atrás da porta. "Vou manter a porta fechada. Fique tranquilo. Vai para a sua casa, toma um banho e dorme. Amanhã a gente se fala". "Vou viajar amanhã, Maitê. Vou para a casa dos meus pais". "Então boa viagem! Vai dar tudo certo". "E se der tudo errado?" "Ao menos você não morreu com nada engasgado, não é mesmo?"
Foi fechando a porta, com a mão no meu peito, me empurrando para fora. Eu, sem saber o que pensar, ando de costas, porta no meu nariz. Deslizei até sentar no chão, com a porta fechada as minhas costas. Porra, Maitê...
Volto para casa, chutando pedras. A noite está mais escura, mais nebulosa. Lembrei da minha primeira namorada. Franciele. Ou Franciane. Fran. Algo assim. Gatinha. Meu primeiro beijo. Nosso namoro durou três semanas e duas sessões de cinema. Um dia ela me chamou para ir ao cinema. Não tinha grana. Sugeri um sorvete. Para isso eu tinha. Ela sorriu, deu um beijo no meu rosto e disse que mais tarde me ligava. Não ligou. Não atendeu minhas ligações.
Dias depois estava agarrada com um outro garoto da rua de trás de casa. Kleverson. Klevinho, como gostava de ser chamado. O nome dele eu não esqueci. O cara era durão. Falava alto e gesticulava como um gangster. Mantinha um bigodinho metido a besta e dizia que batia ou ia bater em todo mundo. Encarava a molecada e perguntava se alguém havia perdido o cu em sua cara. Melhor olhar para baixo.
Naquela mesma época eu mudei de bairro e nunca mais vi nenhum dos dois. Melhor coisa. A Fran partiu meu coração. Mas agora com a Maitê foi pior. O que fazer depois?
Tomar banho, dormir, acordar, trabalhar, pegar as coisas, viajar, torcer para o mundo não ter acabado até lá. O quanto a Gabi tem a ver com tudo isso? O quanto o jarro tem a ver com isso? Não sei.
No dia seguinte não se falava de outra coisa. No ônibus, indo para o trabalho, as pessoas estavam apreensivas. "Você viu aquilo no hospital, nossa que horror!" "Acho que é um sinal do fim dos tempos!" "Nossa, mas ninguém fala mais nada, né? Será que é algum tipo de conspiração? Aposto que é vacina vencida ou coisa assim..." "Estão falando que é um tipo de raiva diferente, que ataca a pessoa e ela enlouquece..."
Esse foi o diálogo de duas tiazinhas sentadas perto de mim. Imagina se elas presenciassem a Gabi vinda direto do mundo dos mortos? Achariam que era o apocalipse. Eu acho. E nem religioso eu sou.
No escritório, tudo na mesma. A Bruna andava rebolando pelo corredor de um lado para o outro em seus afazeres. Em alguns momentos parava e me encarava, como se quisesse enxergar a minha alma. Desculpa, ela é plena escuridão. O Pereira surtado com o trabalho, gritava consigo mesmo e batia na mesa. A galera só olhava para os lados e tentava se focar em seus projetos.
Passei o dia a procurar algo sobre a chácara. Não foi difícil. Fotos e notícias sobre a carnificina tomavam todos os tabloides locais. Trinta e uma pessoas mortas. Uma tragédia. Ao menos dez desaparecidas, entre as pessoas do hospital e gente que deveria estar na festa.
Em um vídeo o responsável pela investigação pedia para a população não entrar em pânico. Isso, certamente, geraria o pânico. O hospital ainda estava interditado e grupos de militares com experiência em combate na selva estava a caminho e devia procurar os desaparecidos. A polícia já agia, depois de terem perdido homens durante a madrugada. A chácara estava cercada e vigiada por boa parte da corporação. Uma campanha de vacinação antirrábica se iniciaria. Acho que não adianta. Mas não vou falar nada. Terão que descobrir sozinhos.
Durante o dia, Bruna veio me perguntar se eu havia visto o episódio. Aliás, todos se perguntavam. E me perguntavam. Afinal, o corpo da Gabi ainda estava desaparecido. Eu apenas dizia que não sabia de nada. Desconversava. Mudava o foco de atenção de mim para a Bruna. Gostosa, como sempre. Mas eu, gamado na Maitê.
Quando acabou o expediente, o porteiro me entregou uma carta, mala direta. Abri. De novo da tal Igreja Milagre ao Amanhecer. Quando amanhecesse estaria na casa dos meus pais. Seria um milagre se tudo corresse bem.
Ao chegar em casa, arrumei as malas. Modo de dizer, na real, enfiei tudo em uma mochila. Rápido e eficiente. Tentei tirar uma foto do jarro com a câmera do celular. Tentei. Não deu certo. A cor estourou. Tentei outra. Borrado. Outra. Borrado novamente. Tá na cara que tem alguma merda com esse jarro maldito. Peguei um papel e desenhei. Fiz o melhor que pude e isso é assim: bem melhor que a maioria das pessoas, longe de ser um Leonardo Da Vinci. Eu não me atrevi a segurar o jarro, nem para virá-lo ou coisa assim. Estava traumatizado demais para isso. Dani esmagou a cabeça da Gabi com aquilo. Deixa quieto.
Havia um clima estranho na cidade com a chegada do exército e seus veículos blindados. Era como se estivéssemos em guerra. Sem nem saber quem ou o quê eram os inimigos!
Passagem comprada, seriam três horas de viagem, mais meia hora em um ônibus até a casa dos meus pais. Sento na janela. Uma gorducha senta ao meu lado. Tem um cheiro bom, morango e uma voz macia e agradável, como se fosse uma dubladora de filmes da Disney. Contou sobre a filha que fazia intercâmbio, sobre a mãe doente, sobre a morte do pai e de este como lutara contra o câncer.
Meus olhos pesavam. Pedi licença, coloquei os fones de ouvidos e desejei boa viagem. Tocava The Doors mas devia ter uma série de outros clássicos na playlist. Dormi ao som de Riders on the storm, eu acho. O ônibus mal saíra da rodoviária.
Acordei com um peso sobre o meu peito. Tocava Welcome to the Jungle, do Guns N' Roses. O ônibus havia parado. Com sono, olhei pela janela e apesar do breu, era possível ver uma enorme fila de faróis de um lado e de outro da estrada. Tirei os fones e empurrei a gorducha caída em cima de mim. Tombou no corredor do ônibus sem vida.
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MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do Jarro
HorrorJoão Roberto mora em uma república com amigos, é frustrado com o seu trabalho e um desastre na vida amorosa. Distante de seus pais e sem fazer questão de maior proximidade, descobre algo assombroso na história de sua família. Em um domingo de man...