Fiquei assombrado com as revelações do meu avô. Desconhecia esse outro lado do velho. Há, ainda, muitas outras coisas. Só irei descobrir após ler o diário. E não tenho ideia se fará diferença.
Meus pais chegaram enquanto estava em meu quarto, tentando não pensar em nada, olhando para o caderninho, sem ter coragem de abri-lo. Também não sabia se deveria contar para eles sobre a confissão do nono. Desnecessário. Essa é uma explicação unicamente válida para mim. E não diz absolutamente nada. Não sei como parar a maldição, não sei como será o futuro, não sei como a coisa toda começou.
"Trouxemos o almoço. Você não vai comer?" Era a minha mãe na porta. Sabe as pessoas dizendo amar e querer comer a comida da mamãe? Eu não faço parte desse grupo porque minha mãe não é esse tipo de mãe. Quando ela não compra a comida pronta, compra congelada. Já o meu pai, não. Ele faz experimentos culinários. Uma forma polida de dizer gororoba. Não fosse o micro-ondas, não teríamos almoço hoje.
Meu avô sentado na sala, prato em mãos, assistia a TV e praguejava contra o apresentador. Minha mãe comia entretida com o próprio celular. "Como foi com o velho?" Meu pai estava tão curioso quanto eu. A quebra do silêncio fez com que eu quase engasgasse com lasanha sabor nada. "O senhor deveria perguntar para ele." Meu pai pausou, refletiu entre um garfada e outra. "Ele não me conta essas coisas. Tirando quando que ele fala comigo em italiano, a vida dele se resume a Brasil. E mais nada. Sobre o tal do jarro, a única coisa que dizia era que tirando o brasão, tudo o mais que trouxe da Itália trouxe desgraça. Incluindo o jarro e as memórias. Seu nono diz: memórias existem para serem esquecidas."
Algo me parecia incompleto nessa história. "Segundo a mamãe, ele falava sempre do jarro." Ela olhou por cima da tela por meio segundo, mastigando. Sorriu e voltou os olhos ao aparelho em sequência, ignorando a conversa com sucesso. "Sempre que alguém morre de forma bizarra, ele fala do tal jarro. 'Esse fulano deve ser dono do jarro.' Aí ele conta que teve um jarro e ele era amaldiçoado. Todo mundo que encostava nele, morria. Ninguém acreditava no seu avô e nem ele mesmo acreditava nisso" "Nunca escutei ele falar sobre esse tipo de coisa..." "Então devia prestar mais atenção no velho."
Aquilo foi como um soco no meu estômago. De fato, as lembranças com meu avô é dele velho, talvez um pouco menos, aporrinhando todo mundo. Meu pai, deslocado de si mesmo e da casa por conta do trabalho. Minha mãe, obcecada pela casa e por ela mesma. E eu, jogado de um canto a outro sem prestar atenção em mim e nos outros. Meu pai tinha razão. Eu sempre fui deslocado da história da minha própria casa e de mim mesmo. Agora, na beira do abismo, bem clichê, é fato, me encontro no eixo fundamental, a minha história, a história da minha família e o destino da humanidade cruzados - não sei se é isso, mas não custa achar.
"Como está o mundo lá fora?" Estava curioso. As coisas mudam de uma hora para outra. "As lojas de ferragens estão cheias. Gente querendo cadeados e arames farpados para os muros. Vi pessoas comprando água e comida para estocar. Há um clima estranho no ar, as pessoas comentam muito sobre o que fazer, se há vacinas para evitar o contágio, se há remédios para tratamento. Reclamam do excesso de informações e da falta de informações. Mas aqui na cidade não há nenhum caso. As forças armadas estão nas ruas. Mas não trazem tanta segurança. E os fardados estão com tanto medo quanto nós."
Meu pai tem disso em seu modo de falar, sempre didático e polido. Lembra um apresentador de noticiário. Um noticiário chato, é verdade. Nunca há muita emoção na sua voz. "Alguma notícia sobre vítimas?" "Eles falam em mortos e desaparecidos. Não em infectados ou mortos-vivos. Admitiram mais de duas centenas de mortos e um mesmo tanto de pessoas desaparecidas. Esse número deve ser muito maior. Vi alguma coisa sobre o incidente na rodovia e do grande número de vítimas. Não querem causar pânico, mas isso inevitável."
O tom pessimista e resignado enquanto meu pai comia pudim industrializado foi a brecha que eu precisava para encaminhar o assunto: "Sabe ler em italiano, pai?" "Mais do que provavelmente acho que sei.""Então vem comigo." Fui com ele ao meu quarto e joguei nas mãos dele o diário."É hora de conhecer a história do vovô. Apenas leia."
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MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do Jarro
TerrorJoão Roberto mora em uma república com amigos, é frustrado com o seu trabalho e um desastre na vida amorosa. Distante de seus pais e sem fazer questão de maior proximidade, descobre algo assombroso na história de sua família. Em um domingo de man...