Café! Eu preciso de café. Não comi nada em casa, não deu tempo. Bruna, a secretária, estava ali na recepção, com a bunda encostada na mesa, pernas cruzadas equilibrada em um par de saltos. Olhava para as próprias unhas. "Preciso de café, Bruna. Você passou?" "Nossa, bom dia para você também, João. Dormiu comigo essa noite?" "Infelizmente não". Ela desfez a cara emburrada do instante anterior. Lancei um sorrisinho sacana. Ela entendeu a brincadeira e mostrou os dentes brancos, levemente separados, tipo Madonna, erguendo as bochechas exibindo as covinhas. Fazíamos essas brincadeiras um com o outro.
Ela era tesuda demais. Sua voz era tesuda. A forma como caminhava era tesuda. Falava como se estivesse derretendo, como se fosse locutora de propaganda de motel. Tinha a minha idade, sei lá. Estava em uma camisa de botões exibindo um leve decote, o cabelo em coque, a saia escura até os joelhos com o corte lateral. A maquiagem suave. Ela era linda. "Você só usa essas camisetas de banda. Quando vai se vestir como um adulto? Penteia esse cabelo, faz barba. Você fica gatão quando se alinha, usa camisa, terno e gravata..." olhei torto "Isso aqui é rock and roll e atitude, Bruna! Atitude!" "Se tem uma coisa que você não tem é atitude, João!" Foi como um soco no queixo. "Suas unhas estão lindas! A cor do seu esmalte combinou com seus olhos". Deu um beijo no meu rosto e foi na minicozinha atrás de sua mesa. Aprendam. Elogie a unhas de uma mulher. Trouxe uma xícara de café e um sorriso nos lábios.
O Pereira ainda não chegara. Aposto que se eu chegasse dois minutos atrasado, certamente ele estaria na mesa dele, logo após a recepção, me recriminando e xingando.
Não havia muito naquele escritório. Fora a recepção e a minicozinha, abria-se para um hall com três salas com portas de vidro. A sala do Pereira, de frente para a recepção era a maior. Servia também para reuniões. Passei com meu café e minha autoestima - meio destruída, meio renovada - até meu canto em minha sala. Ninguém para vê-la. Tomei meu café. Quente e amargo. Olhei pela janela, o tempo estava mudando, estava fechando, meio cinza.
Fui para o meu canto, na sala do Pierre e da Aninha, os projetistas. Dois grandes arquitetos, responsáveis pela criação e a assinatura dos projetos. As pranchas tomavam todo o ambiente, folhas e réguas e lapiseiras e canetas. As mesas abarrotadas de ideias, desenhos iniciados, pela metade, finalizados. Sonhos de pessoas, gênio dos artistas. As referências pregadas no mural os inspiravam e traziam toda a criatividade necessária. Eu, ficava num computador em um canto. Olhava os esboços e colocava no programa. Tudo muito técnico, ao menos para mim. Sem lá muitas ideias.
Na outra sala ficavam os o Douglas e o Gerson. Os caras eram grandes da equipe de vendas, marketing, propaganda, designer... tudo. Eram muito bons. A sala deles se dividida em duas com um computador para cada e uma grande mesa cheia de papéis e ideias no centro. Ali todo mundo era muito bom. O Pereira mesmo, chefe e dono do escritório, era muito bom. Fazia projetos incríveis. Apaixonado por urbanismo, odiava profundamente aqueles grandes condomínios fechados separados das cidades. "Coisa de gente mesquinha" segundo ele. Advinha o que fazia ele ganhar dinheiro? Entre outras coisas, projetar condomínios. Ele ficava com a barriga saliente rondando em torno de sua mesa. Tirava os óculos, coçava a grande barba grisalha, se afastava um pouco. Retornava ao projeto. A parte mais legal da coisa era ele ser apaixonado por rock and roll. Ele era desses tiozões motociclistas, lobos do asfalto, com uma Harley-Davidson e um monte de cilindradas. Aliás, acho que foi por isso que ele me contratou.
Cheguei lá, convocado para uma entrevista. Fui bonitinho. Calça jeans, tênis limpinho, um casaco de um terno e embaixo uma camiseta do The Who. Ele olhou para mim "Essa é a melhor banda do planeta." Eu só balancei a cabeça afirmativamente, meio emocionado. "Won't Get Fooled Again!" completei. Ele me cumprimentou e indicou a minha mesa. Eu estava contratado. Ele sorria.
A gente media o nível de tensão, euforia e entusiasmo do Pereira de acordo com a playlist. Ele colocava no seu computador e o som, claro, ia para além da sua sala. Ia de Ramones até Black Sabbath, passava por David Bowie, por Beatles, Scorpions, Iron Maiden, Metallica. De vez em quando tocava um Raul e ele chorava. Por vezes olhava para os retratos de suas duas filhas e chorava. Olhava para o retrato da esposa, falecida já a bastante tempo e chorava. Era enternecedor ver tanta devoção. Ele dizia que me amava, que eu era o filho que ele não teve. Por isso brigava tanto comigo. Me ama menos, porra!
Sentei no computador e comecei a fazer minhas coisas. Passou uma hora e ninguém. A Bruna ficou lá, trocando ideia, falando da mãe dela, das irmãs malucas, de ex-namorados "Não faça isso, nunca" me aconselhava. "Fala aí da sua vida" eu não queria falar nada, nem queria pensar. Lembrei da Gabi... como será que ela estava? Lembrei da Maitê. Ainda ia chegar na Maitê... chamar ela para sair. Ia ser louco. A Bruna também, ali na minha frente, derretendo. "Você está estranho... pensando e fazendo caras e bocas..." Eu era assim. Pensava nas coisas e fazia caretas. Certeza que ela viu eu mordendo o lábio pensando numa suruba monstra com ela e a Maitê e depois um olhar de puro terror, por não saber se daria conta. Era imaginação, então daria. Sorri.
Ela não parava de falar. Não chegava ninguém. Será que eu perdi algo?"Bruna, cadê todo mundo?" "Achei que você não perdesse uma boca-livre, comida grátis. Estão em um café com a empreiteira lá no condomínio novo" "Eu devia estar lá?" Claro que não. Eu era dispensável dessas coisas. Café de inauguração da nova fase, logo na segunda de manhã. Nem lembrei. Se tivesse lembrado, teria ido.
A manhã se arrastava. Danilinho não respondia as mensagens que eu mandava pelo computador. Eu sem celular. A Bruna... bem... podia ser impressão minha, mas parecia que o decote estava um pouco maior... E ela ia da recepção até a minha mesa, mexia nos papéis como se entendesse, falava da vida. Até que chega alguém à porta. "Atende, Bruna. Deixa eu trabalhar um pouco, vai." Ela sai rebolando. Volta. "É para você".
Ninguém me procurava no trabalho. Ninguém. Eu não dava importância para meu trabalho. Nem falava dele para as pessoas. Qual a novidade agora. Vou até a recepção e ali, na mesma sala que eu e a Bruna estava Maitê e suas tatuagens maravilhosas. Era um sonho?
"Desfaz essa cara de besta, e tira esse sorriso que o teu amigo precisa de você. A Gabi morreu." Sim. O dia estava cinza.
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MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do Jarro
HororJoão Roberto mora em uma república com amigos, é frustrado com o seu trabalho e um desastre na vida amorosa. Distante de seus pais e sem fazer questão de maior proximidade, descobre algo assombroso na história de sua família. Em um domingo de man...