Quando eu tinha quatros anos de idade, ganhei um gatinho. Bem filhotinho. Havia sido rejeitado pela mãe. Sei lá como é isso. Nós o adotamos. Minha mãe dava leite na seringa para ele. Eu lembro. Eu ajudava. Chamei o gatinho de Feliz. Feliz, não Félix. Feliz. "Um bom nome para um gato" segundo a minha mãe. Dias depois, lembro dele gordinho. Aí, um dia ele conheceu a minha cachorra, pastora alemã, a Jade. Foi o último dia dele. Uma mordida. Jade agitava o bicho de um lado para o outro. O corpo do Feliz balançava como em uma dança violenta, um rebolado mortal. Jade soltou lançando-o no espaço. Lembro do baque seco na parede e a queda no chão da cozinha. O bicho deu seus últimos tremeliques e parou. Eu segurava um copo de leite com chocolate. Assisti aquilo em uma manhã, pouco antes de ir para a escolinha. Minha mãe me arrastou pela gola da camisa. "Eu não disse para você não deixar a Jade entrar?" Jade era um doce de cachorra. Desde que nenhum outro bicho tentasse ocupar seu lugar na casa. Eu tinha quatro anos. A primeira vez que me deparei com a morte.
Minha mãe pegou o gato sem vida, colocou em uma sacola plástica, colocou no lixo e colocou o lixo para fora de casa. Terminei meu leite e fui para a escola. Não lembro de ter chorado. Mas lembro do Feliz sendo descartado junto com as bananas que apodreceram ainda na fruteira e com as sobras de comidas que ninguém mais queria.
Bruna viu meu semblante encolher, murchar, viu meus olhos ficarem turvos, inundados por lágrimas que tentei evitar, a todo custo que caíssem. "Vai nessa João, que eu cuido de tudo". Maitê me arrastou pelas mãos nos corredores do prédio até o elevador. Sua mão quente e macia segurava a minha, fria, descarnada. Podia segurar aquela mão por toda a vida. Deu tempo de ver o folheto religioso que eu deixei ali no lixo antes da porta se abrir. Entramos e eu despenquei chorando convulsivamente. Maitê me abraçou. Seus seios contra o meu corpo. Reconfortante.
Era primeira vez que alguém próximo assim de mim morria. É claro que ir a enterros de parentes de amigos para dar força aos amigos é uma coisa. Nunca alguém que estivesse sempre por perto, como era a Gabi. Aliás, eu apresentei a Gabi para o Danilinho. Ela me deu umas aulas de inglês. Um dia, a gente estava no shopping, eu, os caras da república, ela apareceu sorrindo. Ela tinha um sorriso lindo. Seu rosto rechonchudo era emoldurado por uma franja simpática. Olhos grandes e bondosos, cílios naturalmente cumpridos. Exalava beleza. E aquele sorriso. Quando me viu, naquele dia, veio me cumprimentar. Danilinho olha para a moça e olha para mim. "Eu não sabia que você tinha uma amiga modelo". Ela olhou para baixo, nos olhos do Dani e manda "Modelo plus-size, você quer dizer?". E agora ela estava morta.
E o Danilinho? O Dani devia estar arrasado. Caramba. Eu não consigo me colocar no lugar dele. Não dá.
Morte é uma coisa absurda. Em um momento você está. No outro não está mais. Não sei se faz diferença para quem morre. Você deixa de existir. Para quem fica, só fica a saudade. A dor de não poder ter dito adeus, de não poder dizer desculpa, obrigado, de se mostrar grato. O lance de vida após a morte é outra coisa. Não sei se acredito nisso. Não queremos acabar, aceitar que nosso corpo permanece, agora em outros corpos. Meus átomos saem de mim e estão em outros seres vivos ou que geraram a vida. Lindo isso. Mas a Gabi, do jeito que foi. Ela não tinha um histórico de depressão ou coisa assim. Um pouco de ansiedade, de vez em quando se acabava em chocolates. Mas nenhum sinal de que fosse fazer algo extremo. Suicídio. Que coisa. Eu não conseguia entender. Como assim?
Maitê abriu a porta traseira de um off road vermelho. Paçoca estava ali. Segurava meu celular e meus óculos de sol. "Não esquece mais essa droga." Me abraçou. Choramos ali, enquanto a Maitê também nos fazia companhia no banco traseiro. No volante estava o Betão, o triatleta da perna amputada. Ao seu lado o Fred. Fred se virou para nós e segurou no meu ombro, tentando conter as lágrimas. Betão dirigia. Eu olhava para a cidade. Já chovia. "Para onde vamos?" "No velório" "Já?" "Já!". A cidade passava por nós e ia ficando cada vez mais embaçada. Meus dedos, repousados em minha perna, tremiam. Um calor e frio subiam e desciam pelo meu corpo. Meus dedos iam ficando embaçados. Já não aguentava enxergar a cidade. Não havia cidade. Não havia dedos, nem carro, nem Betão, nem Maitê. Apaguei.
Eu corria por um campo aberto. Não havia trilha, nem nada assim. Só um gramado verde esmeralda. Eu corria. Dava dribles em marcadores invisíveis. Como se jogasse futebol americano contra ninguém. E eu corria. O vento batia no meu rosto. O campo ia ficando cada vez mais amplo. Ia se alargando em minha visão. E quanto mais eu corria, mais sentia como se caísse em um abismo. Corria em direção a um abismo. Vejo um homem, no meio daquele campo. Segurava um guarda-chuvas preto. Vestia uma roupa escura, um casaco. Tinha um chapéu sobre a cabeça. Não sorria. Fazia um gesto com a mão me mandando parar. Eu tentava mas não conseguia. Ele continuava, de forma mais incisiva. Não chovia. Por que aquele guarda-chuva? O Sol brilhava. Estava próximo. Ele, no entanto, ficava cada vez menor. Acenava, agora, em um adeus. Me parecia tão familiar. Chegaria nele? Eu corria mais rápido e mais rápido e mais rápido.
Ele some. Caio de boca no chão. E foi como se ela ficasse inundada de lama. A grama irritava meu rosto. Admirava o céu, com o canto dos olhos. Estava azul e pontos escuros voavam em círculos. Piscava meus olhos, tentando focar em algo. Abutres, corvos, urubus. Pisquei novamente e de novo. Os pássaros descem em espiral, na minha direção. Falhei ao tentar me levantar. Estou imóvel. Meus olhos se movem rápidos, desgovernados procurando ajuda, salvação. Meus membros não se movem um milímetro. Só meus olhos se movem. Que lindo céu azul... As aves o tornam escuro. Tapam a visão. Fecho os olhos com força, para afastá-las. Estão a minha volta. Bicam meu rosto. Suas garras arrancam as minhas carnes. Batem suas asas em mim. Quero gritar. Não consigo. Quero gritar, não consigo... Quero gritar! Quero gritar! Quero gritar! Grito!
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MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do Jarro
TerrorJoão Roberto mora em uma república com amigos, é frustrado com o seu trabalho e um desastre na vida amorosa. Distante de seus pais e sem fazer questão de maior proximidade, descobre algo assombroso na história de sua família. Em um domingo de man...