O Sono

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Quando a gente não dorme, as coisas ficam mais lentas, mais moles. A gente perde um pouco a noção do tempo e de como se deslocar no espaço. Tudo é sutil e há um brilho ínfimo que acaba por nos fazer reparar nas coisas para as quais nunca dispensamos atenção. Falo de detalhes, falo de ter aquela imersão transcendente nos elementos tão cotidianos. Falo de prestar atenção nas curvas arqueadas das grades dos portões da vizinhança, das pedras que formam as calçadas, do verde intenso das árvores contrastando com o azul do céu e com o branco das nuvens. A claridade atravessa os óculos escuros e ainda assim é como se o real fosse atingir seu rosto sonolento a qualquer instante, esfregando sua cara em algo muito menos sublime que um ponto de ônibus e a visão de estar lá dentro despedindo-se dos que ficam. Eu perdi o ônibus. Cheguei no ponto e ele partiu. Eu não estava dentro e chegaria no escritório vinte minutos após o previsto e esperado, inclusive pelo chefe, o Sr. Pereira.

Havia ainda um cadáver duplamente morto na minha casa e eu carrego comigo a cabeça esfacelada da Gabi em uma mochila para dispensá-la em algum lugar do centro. Pesava tanto quanto dois livros grossos e eu, ainda assim, conseguia pensar em piadinhas com o fato de que ela teria perdido a cabeça pelo Danilinho.

Pegar o ônibus vinte minutos depois também significava pegar um ônibus mais cheio, ficar em pé e ouvir conversas de pessoas estranhas. Um cara barrigudinho na casa dos seus sessenta e tantos anos, contando suas experiências sexuais com uma velhinha safada – segundo ele – e de suas dores no ciático. De uma moça que contava para a outra o assédio do patrão. E a outra que resolvia que ser assediada por aquele patrão talvez não fosse algo tão ruim. Do menininho que contava dos seus amiguinhos de escola, entre eles o Marcos que pedia para as meninas darem "oi" para o seu amiguinho ali embaixo – apontava para o próprio pênis.

O porteiro do prédio não estava e ninguém me disse bom dia. Bruna me esperava com um sorriso diferente nos lábios. Minha vontade era colocar o que sobrou da cabeça da Gabi na mesa dela e pedir para me ajudar a resolver. Trouxe um café e estava deslumbrante como sempre. O cheiro do café misturado ao perfume doce da secretária criou uma condição perfeita para um estado de enjoo e calafrios. Eu não sei o que fazer com a cabeça, por enquanto, não posso perdê-la.

Pereira nem olhou na minha cara e a manhã se arrastou como sempre. Eu com os meus vetores, escutando ao fundo o Black Álbum do Metallica reverberando direto da sala da chefia. Bruna de vez em quando esfregava as coxas na minha mesa e falava algo sobre minha camiseta do The Doors. Na hora do almoço peguei de dentro da mochila a sacola que continha a cabeça, envolta em inúmeras outras sacolas e sacos plásticos. Meu medo de que a coisa toda começasse a vazar se mostrou infundado. Eu sabia que câmeras de proteção no centro não faltavam, e então, eu tinha que achar pontos falhos, sombras e coisas assim para não ser descoberto. Ou seja, eu teria que sair com a sacola e voltar com a sacola e esta deveria estar sempre cheia. Fui até a padaria, mas muitas câmeras das ruas e do estabelecimento impediram que eu me desfizesse da cabeça ali mesmo. Dei a volta e fui até um restaurante mequetrefe. Mesma coisa. Voltei com a cabeça para o escritório.

A sorte virou quando Pereira me chamou para acompanhá-lo em uma visita a uma obra. Era um canteiro gigantesco, e, talvez, ali fosse a chance. Voltei com a cabeça dentro da mochila, coloquei-a nas costas e fui com Pereira em sua Harley até um grande condomínio de apartamentos que estava em fase inicial.

O sono e a necessidade de ficar equilibrado, lembrar do que e quando fazer e das anotações que fora incumbido de fazer tornaram tudo uma grande tortura. Tomar as medidas e refazer as conferências para projetar a garagem e pensar nas distribuições de vagas era algo premente. As cores e os sons das máquinas ecoavam em minha cabeça e eu praticamente flutuava de um lado a outro com uma trena digital nas mãos. As estacas já estavam assentadas e, na maior parte da obra, crateras gigantescas recebiam toneladas de concreto usinado para acomodar a estrutura do prédio. Ali, hoje, jaz a cabeça da Gabi. Faltava dar fim ao corpo.

Em casa tudo certo. Dona Rosa chegou em casa e voltou para a casa dela. Ela ali só faz a limpeza uma vez por semana, nas quartas. A casa já tinha sido limpa duas vezes em três dias, praticamente. Fred conseguiu o carro do Betão. A EcoSport tinha rack para colocar coisas em cima do teto (quase sempre a bicicleta). Amarramos o colchão com o resto do corpo da Gabi no veículo e partimos. Eu, Fred e Paçoca topamos essa missão. Ainda não havia dormido (cochilo no ônibus não conta) e tudo ainda estava meio diferente diante dos meus olhos.

A cada semáforo com câmera de vigilância eu me preocupava. Como se soubessem do nosso cadáver no teto. As pessoas nos encaravam e olhavam para o nosso colchão todo torto, com um calombo na sua porção central. Nunca imaginei ser tão difícil passear pela cidade com o sentimento de um psicopata que pensara em todas as formas de ocultar o cadáver e, posteriormente dar fim no mesmo.

Rumamos em direção à zona rural. E avistamos algo que faz a festa da galera que comercializa seus produtos na feira do rolo: uma zona de descarte de entulhos, e lixo que não é bem lixo. Ali, inúmeras pessoas reviram os entulhos, mas as forças do Estado tentam coibir. Então, lá chegando, talvez devido a carência de materiais novos (esse tipo de descarte é crime ambiental), devido a fiscalização ou horário (já era fim de tarde, Sol se pondo), depositamos o colchão ao lado de um grande monte de serragem. A ideia inicial era deixar ali e ir embora. Mas depois pensamos que alguém poderia levar o colchão ou algo assim e seria ainda pior. Colocar fogo seria ideal. A espuma daria um jeito no corpo, aumentando a combustão e desaparecendo com rastros de quem o seria. Mas a serragem seria perfeita. Escalei o monte e causei um desmoronamento sobre o colchão com a Gabi. A serragem seca, seria uma pira maravilhosa. 

Colocar fogo naquilo aumentaria a nossa pena de danos ambientais. Tudo para se pensar. Usar para ocultar um corpo, pior ainda. Mas, dane-se. Uma quantidade significante de serragem sumia com o colchão. Gasolina. Tudo aquilo queimaria por horas e horas e horas. As altas temperaturas conseguidas, apesar da queima vagarosa da serragem e da espuma, fariam com que não sobrasse nada do corpo da Gabi, nem do colchão. A queima se dá de dentro para fora e aquilo tudo deverá ser cozido, assado, tostado e incinerado ao longo de toda a noite e boa parte do dia seguinte. As chamas não se elevavam muito, apesar da grande quantidade de fumaça que poderia ser avistada de muito longe. 

Em casa, um saco plástico cobria o meu jarro amaldiçoado. Acho essa conclusão mais do que válida. Apesar que a sombra dele me dá uma certa paúra. Hoje eu dormiria o sono dos deuses que se esquecem da criação e simplesmente desfalecem sobre seus próprios feitos. Um sono sem mágoa, sem culpa, sem nada. Um sono sem sonhos. Apenas o descanso do corpo, para um próximo dia tedioso.  

Na noite seguinte pegamos o carro do Betão novamente e passamos pelo terreno dos entulhos. Tudo estava resolvido. Nem sinal do corpo, nem do colchão. No local, só um buraco feito pelo fogo que escavara e consumira toda a serragem que se encontrava abaixo, em cima, aos lados do colchão. Estava feito. Não era mais hora de se lamentar. Era hora de comemorar. Ao menos tentar esquecer os últimos dias. Entorpecer o corpo e a alma.

Se bem que se déssemos atenção ao que foi noticiado não teríamos nos atrevido a sair de casa. De um surto de raiva, hidrofobia que se alastrava entre humanos. Muitos dos que foram levados aos hospitais acabaram mordendo pessoas lá dentro e fugindo posteriormente. Muitos feridos e ninguém sabia o que era aquilo, nem se era raiva mesmo.

Fred saiu acelerando em direção a rodovia. Paçoca acendeu um baseado, Beautiful Dream era o nome da variedade. Havia uma festa para ir. Festa, na atual circunstância serviria apenas para nos tirar de casa, tirar as lembranças mórbidas dos últimos dias. Uma chácara, fora da cidade. Som alto, bebida, sem frescuras. Ninguém sabia se era aniversário, festa de despedida, festa de chegada. Era uma festa. "Só colar, depois a gente vê o resto". Era disso que a gente precisava. Essa noite prometia.    

MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do JarroOnde histórias criam vida. Descubra agora