O Jarro

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Olhei para o Jarro e ele olhou para mim. Um fascínio estupendo de um pelo outro. É a única explicação.

Estava em meio a tantas outras peças que você deve ter visto na casa da sua avó. Na verdade, parece que alguém havia depenado a casa de uma avó. Panelas enferrujadas, talheres tortos, enfeites de geladeiras, bibelôs de cerâmica. E o jarro. De metal. Sei lá qual metal. Meio dourado... Não me peça para falar de cores que eu nunca sei. Devo ter um tipo de daltonismo de não saber cores. Parecia latão. Era lindo. Tinha entalhes que a sujeira e o pó impregnados não deixavam observar. Até parei de beber o caldo de cana. Estava hipnotizado. Estava enfeitiçado. Era a coisa mais linda. Abaixei e fui tocar. Uma mão segurou meu braço, me contendo. "Veja com os olhos" "Eu quero ver com os dedos" "Se tocar vai ter que comprar". 

Cara mal humorado... Isso que eu chamo de um vendedor assertivo. Certeza que ele tinha medo que eu estragasse a composição artística que ele havia feito com utensílios de cozinha velhos. "Quanto custa?" "Cento e Cinquenta" "Dou dez" "Você está me zoando?" "Não, não... Dez conto" "Cento e Quarenta e Cinco, não posso baixar mais que isso".

O cara falava bem sério. Era um sujeito muito alto e muito forte, uma barba por fazer, um Ray-Ban aviador falsificado espelhado e cara de poucos amigos. Toda a cordialidade do homem brasileiro estava ali, naquele vendedor que não se dobrava por nada. A pechincha também deve ser coisa que brasileiro tem a arte de fazer, menos eu. Tinha Dez Reais no bolso. Acabei andando até minha casa para pegar mais cento e vinte e cinco. Fechamos em cento e trinta e cinco. Uma fortuna para mim. Mas eu queria aquele jarro. E eu nem sabia o porquê.

Na volta o jarro não estava na banca junto aos outros objetos. Tomei um susto. "Porra, cadê meu jarro?" pensei. Uma mão toca o meu ombro. "Tá aqui, embrulhei". Que susto! O filho da puta ainda lê pensamentos! "E se eu não volto?" "Claro que ia voltar".

Dei a grana pro cara. Ele tirou os óculos escuros revelando seus olhos cegos, acinzentados, me mirando como se enxergasse a minha alma, contando as notas sei lá como. "Se cuida e cuida desse jarro". 

Não me contive. "Qual a história dele? Como ele chegou até você?" "Nem queira saber". Olhei para o pacote, um jornal velho envolvia meu jarro. Notei que era o caderno policial falando da assassinato de um morador de rua carbonizado. Era pesado, mais do que eu imaginava. "Como assim? Eu quero saber". O homem já não estava mais a vista. Do mesmo jeito que veio do nada, sumiu, do nada. A feira estava cheia. Muitos rostos suburbanos, periféricos, que nem o meu circulando pelo entorno, esbarrando uns nos outros. Cheiro de espetinho de carne e pastel de feira. Na do vendedor cego. Como podia? Porra, o vendedor era cego!

Como ele tinha sumido assim, desaparecido? Gastei alguns segundos lendo a manchete no embrulho e o cara some. 

Deve ter voltado para o inferno. Mal sabia que talvez não estivesse tão enganado.  

MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do JarroOnde histórias criam vida. Descubra agora