A música estava alta. Maravilha! O legal de fazer uma festa em uma chácara isolada, no meio do mato é você poder deixar a música alta. Quem vai se importar? Nem bicho tem naquele lugar. As localidades mais próximas estão bem... bem distantes. Uns quatro quilômetros pelo menos. No entorno, plantações de eucalipto. Milhões de árvores de eucalipto. Muito em breve, tudo aquilo iria virar lenha ou papel. E aquilo tudo pareceria um grande cemitério com os tocos das árvores cortadas. Até que viesse a nova plantação e tudo mais. Agora era uma floresta iluminada pela luz da lua cheia. Apenas isso.
A chácara era cercada com tela. Menos mal. Os bêbados não irão ficar enganchados em arame farpado. O portão estava fechado, mas sem o cadeado. Os carros estavam estacionados lá dentro. Uns dez, pelo menos. Desci do carro e abri a tranca. Estava com Fred e o Paçoca. Não tenho a mínima ideia como conseguimos fazer o Paçoca vir. É claro que fumamos uma erva pelo caminho. Beautiful Dream era o nome da variedade. Nunca ouvi falar. Mas era um bom nome. Relaxante. A música estava terrivelmente alta. Eletrônica, acelerada. Não conhecia. Mexi a cabeça instintivamente, na batida. Uma paulada no cérebro. Não tinha ninguém ali, ninguém para nos receber, ninguém.
Contornamos a casa. A festa era na piscina, do lado oposto de onde estávamos. Casa grande, imensa. O jardim que ao lado estava escuro, luzes, pelo jeito, só em torno da piscina. Nada de vozes, apenas aquela música alta pra caralho.
Avistei a piscina. Era hora de tomar uma cerveja. Parei ali mesmo. Não tinha ninguém. Ninguém mesmo. Olhei para o Fred que também brecou na hora. "Que festa merda. Cadê todo mundo?". Paçoca apontou para um cooler com as bebidas. "Aquilo é o que me interessa!" nos ultrapassou com uma corridinha marota até ali. Ergueu gloriosamente três latas de cerveja. "Tá gelada!" apenas fiz a leitura labial, música alta. E repetida. A mesma, desde de que chegamos.
Havia alguma coisa muito errada. Ele caminhou em nossa direção. Eu e Fred parados, observando a cena. Escondidos pelas sombras, na lateral da grande casa, na ponta do corredor. Cervejas ao alto, estava com a felicidade total estampada nos lábios. Olhou em direção a casa. Seu olhar mudou, era o puro terror. Seu sorriso deu lugar a pleno espanto. Largou as cervejas no gramado que rodeava a piscina e correu em direção a casa.
Eu e Fred nos entreolhamos e corremos para a mesma direção que ele. Entendemos sua mudança brusca. De frente para a enorme piscina, um salão grande, decorado com bexigas e fitas. As portas de vidro que o separavam da área externa estavam quebradas. Corpos pelo chão. Dezenas. A maior parte mutilados. O cheiro de sangue. Fred vomitou. Eu vomitei. Paçoca repetia, como num mantra "meu Deus, meu Deus". E segurava
Vimos uma mão se mexendo em meio aos corpos estripados. Era uma mulher. Era. Nada ali lembrava, a não ser o grande brinco que pendia na orelha rasgada junto a um pedaço de pele que parecia ser o pescoço. Desfigurada. Quando nos aproximamos a mão cessou de balançar.
Cabeças separadas de corpos. Barrigas com buracos imensos dos quais haviam sido arrancadas as tripas e demais órgãos. Braços jogados com as pontas dos dedos faltando. Saias em quadris separadas das respectivas pernas. Sapatos que só serviriam para calçar algum pé se alguém tivesse a coragem de tirar o que já estava lá dentro. A música alta. Repetitiva.
O que teria feito aquilo? No sofá, o encontro amoroso de dois corpos sem vida, um sentado em frente ao outro num beijo sem lábios, num abraço sem braços. Em uma espreguiçadeira mais dois corpos, amantes que não tiveram tempo de se despedir sem perder a cabeça. Literalmente. Uma aula de anatomia não deixaria melhor expostos as carnes dos defuntos que aquele quadro macabro e fúnebre. Um coração que não foi entregue a ninguém aquela noite. Em um canto da sala, a mesa de um DJ sem cabeça. Desliguei tudo da tomada. O silêncio que se fez presente tornou a cena ainda mais pavorosa. Que diabos aconteceu aqui. Paçoca fez menção de entrar na casa. Havia mais cômodos ali, talvez mais mortos ou mais sobreviventes.
"Tem alguém aí?!" ele berrou, rompendo o silêncio sepulcral. Foi aí que eu tive medo. E o desconhecido, aquilo que nos tira o chão surge como um urro vindo das profundezas do inferno. De onde vinha aquilo? "Tá vindo da floresta!! Tá vindo da floresta!" Fred me puxava pela camisa. Paçoca, estático. Pânico. "Corre!".
Demos a volta na casa enquanto os urros, rosnados e grunhidos ficavam mais altos. Saudades da música alta! Entramos no carro do Fred – na verdade era o carro do Betão, o affair do Fred – que deu uma ré monstra até imbicar no portão. A tela de arame que separavam a chácara da plantação de eucaliptos se rasgava como papel. Disparamos, cantando pneu. Ainda desci do carro, abri o portão que eu mesmo havia fechado com um trinco.
O rosnado cada vez mais alto, cheiro de sangue, cheiro de morte no ar. Provavelmente era o meu medo, mas deu tempo de entrar no carro e sair deslizando pela estrada de terra.
A luz da Lua iluminava nosso caminho e projetava a sombra de seres que corriam a toda dentro da floresta de eucalipto, seres que se movimentavam tão rápido quanto o nosso carro. "Acelera, acelera!" Fred freava, reduzia, acelerava, punha a língua para fora e dirigia alucinado. Pelo retrovisor via suas silhuetas aproximando. " Acelera, acelera" eu gritava para o Fred. Paçoca seguia no seu mantra, escondido no banco de trás, em posição fetal "Meu Deus, meu Deus". O carro fazia curvas, saltava lombadas e subia em barrancos. Olhei novamente pelo retrovisor e para os lados. Agora só havia as árvores. Continuamos até chegar na estrada principal, uma rodovia asfaltada e duplicada que rumava em direção a cidade. Fred continuava veloz, como se não houvesse amanhã. Olhei para trás. Paçoca tremia com um cigarro de maconha entre os dedos. "Tenho que fumar um". Claro. Nada como um Beautiful Dream após tudo aquilo.
Mas isso tudo foi depois, bem depois, quando percebi que com maldição não se brinca. Antes disso, bem antes disso, teria algumas surpresas no meu trabalho.
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MORTOS-VIVOS!! O Mistério Do Jarro
HorreurJoão Roberto mora em uma república com amigos, é frustrado com o seu trabalho e um desastre na vida amorosa. Distante de seus pais e sem fazer questão de maior proximidade, descobre algo assombroso na história de sua família. Em um domingo de man...