A ascensão de uma Rainha

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A princesa permaneceu com os olhos fechados por alguns segundos.

Não tinha coragem suficiente para olhar para seu pai enquanto ele desaparecia. Não podia encarar toda a traição contida ali. Se chamou de covarde mil vezes, mas não conseguiu. Sua garganta estava tão apertada quanto seu peito. 

Ela não o viu desaparecer, mas sentiu. O poder dele estava passando para ela, como deveria ser. Ele entregou sem resistência e Yanda imaginou o motivo daquilo. Seu poder triplicava rapidamente, como a chama prometera.

Ela seria rainha agora.

E tinha responsabilidades.

Ela abriu os olhos e, na sua frente, não havia nenhum sinal de seu pai. Se amaldiçoou novamente pela covardia de não o olhar nos olhos, mas não pensaria naquilo agora. Não choraria agora. Não podia.

Sentiu, de alguma maneira inexplicável, que seu irmão estava se aproximando e chegaria em alguns minutos. Seu pai sentiu no momento que seu irmão morreu, talvez sentisse a família o tempo todo. Aquilo agradou Yanda e ao mesmo tempo a deixou desolada.

Virou-se para o rei e para a rainha do gelo, que a olhavam com cautela.

- Precisamos resolver algumas coisas. – Disse ela, em tom neutro. Precisava ser forte. Não poderia chorar.

- Será a nova Rainha da tribo do fogo? – perguntou o rei do gelo, encarando-a sem soltar a espada que segurava.

- Não serei, já sou. - Encurtou ela, decidida -  Não há necessidade de coroação, o título é passado quando se derrotam todos os oponentes, creio que consegui isso hoje. – Sua voz era fria e neutra. Mesmo que em seu coração a culpa tivesse o peso de uma montanha.

- Ainda lhe resta um irmão. – Confrontou o rei. Parecia não confiar nela.

- Shuo é meu irmão, mas não lutará contra mim. – Encurtou ela – E sua tribo também não lutará. Nunca mais.

O rei assentiu a seu favor. Ele escutara com atenção as palavras da jovem rainha, que apelou para seu pai parar de lutar em favor da paz.

- Escute, rei. – Disse ela – Não lutaremos. Manteremos um acordo de paz de cordialidade de agora em diante. Acredite quando digo que sei o que aconteceria caso eu não tivesse lutado hoje. Peço que tome a morte do meu pai como vingança pelos seus filhos e que assim sejam as desavenças todas resolvidas.

A rainha do gelo se levantou, olhando para Yanda como se ela não fosse a pessoa que dizia ser.

- Princesa... não... Rainha do Fogo. Ouvimos sobre você, sobre seus feitos em combates, sobre como é forte na guerra. – Disse a Rainha de cabelos brancos – Não sei o que a fez mudar, mas seu apreço pela paz e pelo seu povo é o mesmo que o nosso.

- Selaremos um acordo de paz. Não será preciso derramar mais sangue. – Finalizou o rei.

Ela assentiu, feliz pelo que tinha conseguido.

Então viu KaSuo, filho mais velho do rei, entrando em cena pronto para a batalha. Ele parou, confuso por ninguém estar lutando. Yanda lembrou de como trabalharam juntos para ajudar o irmão dele, Shi, e na relação de amizade platônica que criaram.

- Rei, tenho mais um favor a lhe pedir. – Disse Yanda. Todos olharam, confusos e ansiosos. Não confiavam nela, apesar de tudo.

- Diga, e depois lhe respondo se posso lhe conferir. – Disse o rei, por fim.

- Seu filho KaSuo... deixe que vá ao mundo mortal. – Aquilo surpreendeu a todos, que olharam para ela com estranheza, principalmente KaSuo, que ficou um pouco assustados. – Lá ele achará uma jovem noiva. Não subestime o poder dela, aceite-a e deixe que se casem. Casamentos arranjados são um erro, muito das disputadas que levaram a ocasião de hoje aconteceram por causa deles.

- O que quer dizer? – Perguntou a rainha do Gelo.

- Meu pai amava sua concubina real, rei do gelo. – Ela se dirigiu diretamente para ele. – nunca amou minha mãe, ou a mãe de Shuo ou Xin, mas sim a esta mulher. E pediu a mão dela quando eram jovens e tinham sonhos, mas ela lhe foi prometida. Sem amor, sem consideração, somente para evitar disputas. A culpa pela falta de empatia de meu pai não é de ninguém se não dele mesmo, mas acredito que tudo poderia ter sido diferente caso tivessem ficados juntos.

O rei e a rainha pareciam sinceramente surpresos com a declaração, olhando-se e trocando olhares em uma comunicação silenciosa.

- Não permita que isso aconteça com seu filho. Permita que parta. Sei que vai me questionar sobre como sei que ele encontrará uma noiva no mundo mortal, mas peço que confie em minha palavra. Evitamos assim mais transtornos.

O rei do gelo assentiu, e Yanda sabia que a mente de KaSuo estava trabalhando a toda velocidade. Provavelmente já tinha pensado em quem seria sua noiva, Yanda não tinha ideia de como Lilou e ele se apaixonariam, mas sentiu que fez sua parte para contribuir e deixar essa parte da história inalterada. Talvez Yanda não tivesse sorte no amor, mas algo dentro dela a fazia querer que tudo desse certo para aquele casal.

Finalmente Shuo havia chegado, barulhento como sempre. Ela se voltou para o irmão assim que ele pousou com força no gelo, olhando para ela com intensidade. Ele sentiu quando seu rei morrer, assim como todo seu povo, e sabia que ela agora era sua rainha. Sua irmã mais nova, sua rainha.

Surpreendentemente aquilo não o incomodou. Seria muito mais fácil lidar com ela do que foi com o pai. Ele abaixou a cabeça em cumprimento a ela.

Yanda abaixou a cabeça de volta. Sabia que não precisava, pois era a rainha, mas esse gesto iria demonstrar a ele tudo que ela demoraria horas para dizer. Ela viu nos olhos de Shuo como ele ficou feliz com aquilo. Ele nunca sentiu carinho pelo pai, sempre o odiou, na verdade, mas podia aprender a amar a irmã se tentasse.

Não houve nenhuma troca de palavras entre eles.Todo o entendimento veio fácil e espontâneo. Ele se posicionou atrás delaenquanto ela conversava os termos do acordo com o rei do gelo e seu filho maisvelho. Shuo se sentia a vontade protegendo a retaguarda de Yanda. As coisas se ajeitaram naturalmente daquela maneira. Ao menos era isso que ele pensava.

- Gelo - disse Yanda, seriamente - Em alguns anos enfrentaremos novos problemas. Sérios, que vão abalar especialmente sua família.

O rei estava estarrecido, não sabia como aquela jovem podia saber tanto sobre o futuro, porém confiava nela. Não sabia por que, nem se aquilo era correto, mas confiava nela.

- Quais seriam esses problemas? - Perguntou ele, por fim.

- Não posso garantir que se agitarão mas... chame pela minha ajuda. - Yanda teve medo por Shi, medo do que fariam com ele quando soubessem que não era filho do rei. Ela teve uma criação dura, cruel. Não poderia garantir que aquela criança seria poupada caso soubessem quem era seu pai. Não iria alertar sobre ele ser filho do rei da tribo da Chama de Gelo, supostamente não existiam mais misturas como aquela.

Partiria dali e deixaria aquilo se desenrolar naturalmente, somente iria se envolver caso fosse estritamente necessário.

- Partiremos. - Disse Yanda para ninguém em particular. Seu irmão começou a se mover.

- Jamais será esquecida, Yanda. Será a rainha mais poderosa que a tribo do fogo já teve, e também a mais bondosa. - As palavras partiram da rainha do gelo, que olhava para ela com uma tristeza enorme. Ela tinha acabado de perder seus filhos e Yanda, seu pai. Yanda reconheceu nela sua dor.

Yanda não respondeu. Limitou-se a partir dali rapidamente, olhando brevemente para o irmão que a esperava.

Somente ele viu a lágrima solitária que escorreu pelo rosto dela e, no segundo seguinte, ambos tinham desaparecido de volta para casa.

    

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