Os mesmos olhos

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 O gelo que tomou conta do corpo de Yanda se quebrou em um momento. Todos os seus nervos que haviam paralisado voltaram a funcionar depois de meio segundo. Ela escondeu o choque e a surpresa dentro da costumeira face calma e controlada de rainha. Mesmo assim, quando se afastou da janela, seus dedos tremiam. Ela sentiu os olhos de Yin Kong Shi a seguirem, queimando em suas costas. Ela sentia a presença dele acertá-la como uma bomba.

Ela não estava respirando.

Yanda não podia negar que havia imaginado como esse encontro aconteceria um milhão de vezes, mas não podia imaginar que seria com ela no alto de uma sacada, mirando com os olhos o local onde seu pai havia lhe traído, com o homem que amava parado no centro lhe encarando com aqueles olhos gelados.

Longe do campo de visão dele, Yanda sentou-se na grande cama branca no centro de seu quarto. Shuo provavelmente ficaria preocupado se sentisse ela se agitar demais, por isso ela controlou um pouco as próprias emoções, mesmo que não fosse efetivamente possível ignorar aquela acontecimento.

De repente, sua mente voltou a funcionar. Shi não estava desaparecido? Yanda levantou-se rapidamente, voltando para a sacada esperando ver que aquele homem era uma miragem inventada por ela mesma.

Shi continuava ali, e continuava encarando.

Quando ele começou a caminhar na direção de Yanda um leve pânico tomou conta dela. O passo dele ficava cada vez mais rápido e ela sabia que a qualquer momento ele pularia para a sacada e ficaria cara a cara com ela. Ela esperava sobreviver.

Ou ela podia ir ao encontro dele e não ser pega de surpresa.
As coisas não poderiam ficar mais confusas do que já estavam, por isso Yanda tomou a decisão de pular graciosamente da sacada até o chão. Com isso não foram os olhos dela que se arregalaram de surpresa, mas os dele ao ver ela pousar a alguns centímetros dele na neve.
O silêncio se fez enquanto Yanda se colocava de pé, encarando de baixo aqueles olhos gelados. Mesmo passando tempo tempo desde a última vez que estiveram cara a cara ela ainda podia ver que por trás de toda aquela indiferença havia uma angústia. Talvez fosse pelo jeito leve que ele estreitava os olhos, ou pelo fato dele sempre encarar as pessoas meio segundo a mais que o necessário e meio segundo a menos do que seria considerado desrespeitoso.
- Você parece perdido. - Disse ela, com a voz neutra. Yanda não sabia como ele interpretaria a frase, mas não ficou surpresa quando um olhar de raiva passou por sua face.
- Não sou eu que não deveria estar aqui, o que uma brasa da tribo do fogo está fazendo rondando o palácio de gelo? - Respondeu ele, com a voz fria e irritada.
Yanda piscou, surpresa. Bom, ela não estava usando a coroa mas não pensou que seria confundida com uma plebeia. O príncipe do gelo não sabia quem era e que aparência tinha a corte da tribo vizinha? Ou ele estava testando Yanda?
Qualquer que fosse a motivação dele, Yanda sorriu.
- Estou de férias, esse local é lendário na tribo do fogo. Quis conhecer. - Respondeu ela, ainda com um sorriso fraco. Shi estreitou os olhos ainda mais para ela. - Você não é o rapaz desaparecido? Acho que seu irmão estava preocupado hoje.
- O que você sabe sobre isso? - Perguntou ele, avançando um passo em sua direção. O coração de Yanda falhou um pouco.
- Bom, com certeza sei bastante coisa. Você também saberia, se voltar ao palácio. Não vou lhe dizer nada. - Encurtou ela, mantendo o sorriso calmo. Essa era uma nova forma de agir com ele, embora a indiferença ainda fosse latente.
- Não tenho intensão de voltar ao palácio, espero que mantenha este encontro em segredo. Do contrário, terei que lhe machucar. - Sentenciou ele, afastando-se rapidamente dela.
- Oh - piscou Yanda, olhando para as costas dele. - Mas não posso fazer isso. Estou aqui justamente por sua causa.
Isso fez com que ele parasse abruptamente, ainda sem virar para ela.
- O que quer dizer com isso? - A voz dele era tensa.
- Seu irmão lhe ama o suficiente para pedir ajuda a outras tribos. Isso que quero dizer.
- Nada que ele faça pode me ajudar agora, infelizmente. Tudo que eu preciso de Ka Suo agora é distância.
Yanda observou como os ombros dele ficaram tensos ao falar aquilo. Ele davam pequenos sinais como esse, quase imperceptíveis, mas que indicavam que estava preocupado com algo. É claro, se algo não o atormentasse ele não teria fugido do irmão. Ela sabia, mais do que ninguém, quão longe ele Shi iria por ele.
Talvez fosse hora de uma jogada mais agressiva.
A família do gelo era dada a soluções drásticas. Da primeira vez que tiveram problemas Ka Suo perseguiu a lótus de sangue tentando salvar o irmão. No fim, quem realmente fez um pedido foi Shi, trocando a própria vida pela do irmão morto. Mesmo com a balança sempre pendendo para um lado, como se eles jamais pudessem estar vivos ao mesmo tempo, convivendo em harmonia, nenhum dos dois pararia de tentar. Yanda sabia disso mais do que ninguém, depois de ver os ciclos que se repetiam ao decorrer das eras. Aquela história de morte, vingança e amor era um ciclo. Um ciclo que era era destinada a quebrar daquela vez.
Enquanto as reflexões passavam pela mente da Yanda em uma velocidade alucinante Shi voltou seu olhar para ela, analisando a mulher que ele não fazia ideia quem era. Lhe custava admitir que estava curioso pelo fato da tribo do fogo estar circulando no palácio de gelo. Jamais admitiria que também estava curioso sobre a personalidade da mulher de olhos vermelhos a sua frente.
- Não creio que você esteja resolvendo seus problemas da maneira correta. - Atacou Yanda, sabendo que aquela frase despertaria o interesse dele.
- Não creio ter pedido sua opinião sobre. Nem que você realmente saiba o que está acontecendo. - Retrucou ele. A mulher parecia saber mais do que contava, o que a classificava como perigosa perante ele.
- Você não é a primeira pessoa a ir atrás da Lótus de Sangue. Não será a última. Mas posso lhe garantir uma coisa: nada do que você pedir terminará como você quer.
Shi ficou paralisado ao ouvir as palavras. Ele não havia contado para absolutamente ninguém que estava atrás da Lótus de Sangue.
Ele avançou contra a mulher, mais rápido do que ela pode acompanhar, e quando Yanda percebeu ele segurava seu pulso com força, olhando dentro dos olhos dela com um novo tipo de preocupação e raiva.
Yanda percebeu que ele estava com medo.
- Acha que é o primeiro a ter essa ideia? - Continuou ela, não demonstrando o quão abalada estava por aquela aproximação - Milhares antes de você fizeram um pedido a ela. Todos eles ganharam o que pediram, só para perceber que na verdade tiveram que abrir mão de algo tão valioso quanto. Uma vida por uma vida, uma felicidade por uma felicidade. Nada de bom vem de uma barganha desse tipo.
- Não há como você saber esse tipo de coisa! Não há nenhum registro sobre pedidos anteriores a ela, e ela só abre a cada mil anos! - Ralhou ele, afetado.
- Tente salvar seu irmão dessa maneira e algo tão importante quanto será retirado de você. - Encurtou ela, irritada. Shi nunca foi de escutar, mas ela era uma rainha agora. Estava acostumada a ser tratada como alguém que detinha sabedoria e deveria ser escutada.
- Não me importo. Não há nada que eu não faria para Ka Suo.- Ele também estava irritado. Crescendo como um príncipe rival da tribo do fogo jamais lhe passara pela cabeça estar em uma situação onde uma mulher que ele pensava ser uma plebéia lhe afrontaria, ainda mais por questões pessoais e íntimas das quais ela não deveria ter conhecimento.
- Pois bem, Ka Suo se importaria. Se realmente quer concertar alguma coisa terá que achar outro jeito. Não tente a saída fácil, encontrar alguém e pedir um favor. Isso jamais funcionaria, fique certo disso. Não seja um covarde e vá falar com ele. - Yanda sabia que estava se expondo demais, mas algo dentro dela não a deixava segurar as palavras. Sentia a urgência dos atos e a eletricidade que se formava entre os dois. Junto com a raiva ela sentia a atração, o que ela não sabia era que a atração era recíproca.
Da primeira vez que eles se encontraram Shi era uma criança em um corpo de adulto. Nenhum interesse romântico real vinha da parte dele, terminando seu relacionamento como uma forte amizade. Dessa vez ele era um adulto, e Yanda era uma linda mulher. Agora, Shi notava coisas sobre ela. A maneira como os cílios dela era longos e curvados e levemente avermelhados nas pontas. A maneira como o vento gelado de inverno deixava suas bochechas levemente avermelhadas. O jeito que seu peito subia e descia pela respiração rápida causada pela raiva. O longo cabelo vermelho trançado que parecia ondulante no vento.Nenhum dos dois pensava claramente.
- Você não... - Shi engasgou, demonstrando o nervosismo que tentava esconder - como poderia saber esse tipo de coisa? Eu não...
- Não entende? - Cortou ela, sem controlar a personalidade impulsiva e explosiva que sempre mantinha contida - Eu lhe faço entender, então. Você vai ser tapeado, como um idiota. Vai notar que estragou tudo depois que seu "desejo" foi atendido da pior forma possível. Nada é de graça e não existe uma solução definitiva simples como essa. Não seja tão ingênuo! Você não é mais uma criança...
- Você me conhece melhor do que está me contando. - Shi se recompôs, tentando limpar a mente ao analisar Yanda - Como pode saber essas coisas? Quem é você?
- Você entendeu o que eu falei? Entendeu o motivo disso ser uma ideia ruim? - Perguntou ela, ignorando os questionamentos dele.
- Sim, eu acho.. sim... me responda, quem é você? - Shi havia soltado seu pulso, estava novamente cauteloso e desconfiado.
Ela o observou com raiva. Para Shi talvez fosse fácil mudar de humor, mas Yanda demorava a se acalmar quando ficava com raiva. Não era um sentimento que costumava sentir por Shi, mas as tendências suicidas dele a deixavam fora de si.
- Yanda. Você me conhece como Rainha da Tribo do Fogo. - Falou ela, curvando as costas para uma postura perfeita.
O choque foi visível no olhar dele, e ele se afastou dela com um passo inseguro.
- Vamos ver seu irmão. Agora. - Continuou ela, virando-se de costas e começando a andar.
- Escute, eu não...
- Eu. Disse. AGORA. - Ralhou ela, sua voz saindo quase como um rosnado. - Agora.
Então ele a seguiu.

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