Água do mar terá gosto de sangue de sereia, e sal.

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Shuo fazia seu caminho com a cabeça erguida. Como sempre tudo nele era orgulho e deboche, a aura que ele emitia era intimidadora para fazer os servos olharem para o chão enquanto ele passava. Ele não levava nenhuma espada consigo, mas isso não deixava ninguém mais tranquilo.

Apesar de Yanda vê-lo como um irmão gentil ele ainda tinha sua parte general, assim como ela, e precisava demonstrar força na frente daqueles que não conhecia. Yanda podia ser o ar fresco que os civis do gelo precisavam para confiar neles, Shuo seria o que os manteria alerta. Apesar de que as aparências enganavam, todos estavam muito mais seguros com Shuo do que jamais estariam com a rainha. 

Ele estava indo rumo a cozinha, decidido a pedir uma geleia de pimenta para hoje. Ele não sabia se Yanda tinha levado ou não a ideia a sério, mas ele gostou muito. Tinha certeza que poderia levar os créditos pela invenção depois. 

- Geleia de pimenta vermelha da tribo do fogo... - Murmurou Shuo, distraído. - Servida somente aos mais nobres membros da corte...

Ele ouviu um barulho.

Shuo parou imediatamente, escutando. Parecia algo sendo estilhaçado. Depois de algum segundos o barulho ocorreu novamente, seguido de um gurnido de raiva. Ele levantou a sobrancelha ao reconhecer a voz da princesa das sereias. Mudou seu caminho para a direção do barulho para averiguar o que estava acontecendo.

Ele abriu a porta que separava-o da cena com o pé, dando um leve chute e se mantendo do lado de fora, encostado no parapeito. A princesa não notou sua presença, muito concentrada em destruir aquele local para dar atenção a ele. Pela cheiro de álcool que vinha do local Shuo imaginou que fosse uma adega.

Sua confirmação veio quando viu Lan Shang atirar uma garrafa de vinho branco na parede, fazendo-a estilhaçar e os cacos de vidro caírem sobre o chão, misturando-se com sua destruição anterior. O olhar dele era irado, raivoso e magoado. Shuo podia dizer só de olhar para ela que ela estava sofrendo. Seu semblante beirava o pânico.

Shuo podia entender o medo dela, a rainha das sereias parecia um monstro antes de sair da tribo do gelo momentos antes.

Na verdade, Lan Shang deveria ter ido com ela.

A sereia caiu sobre os joelhos, e Shuo notou que as mãos delas tremiam sobre o colo. Ela iria começar a chorar a qualquer momento. Ou coisa pior, pela maneira com que olhava os cacos de vidro.

- Então, só porque um homem gritou para você se afastar, você vai quebrar em milhares de pedaços e afundar num poço de tristeza miserável enquanto destrói uma das melhores adegas de todos os reinos? - Shuo andou para dentro do quarto, se recostando na parede com os braços cruzados. 


- O que? Eu... - A princesa foi pega de surpresa e deu um passo para trás, assustada. 
- Só porque um homem lhe disse que você é irritante isso é suficiente para calar a voz da sereia com a mais poderosa voz do mar? - Continuou ele, sem saber bem certo o motivo que o levava a provocar a jovem.
- Você não...
- Você foi rejeitada em um casamento e por causa disso vai simplesmente deixar de focar sua vida em você mesmo e virar uma criatura amargurada? Até quanto vai incomodar a rainha?
- Não é... - Os olhos dela se encheram de lágrimas.
- Não é dessa maneira? Bom, o que eu estou vendo é uma princesa chorar no chão, veja bem, no chão sujo de um castelo que não é dela. Pior ainda, ela está abafando o choro já que se ela soltar um único grito provavelmente vai demolir metade do castelo. E adivinhe? Está chorando por causa de um homem que nunca a amou.
- Pois eu o... - Ela tentava retrucar, e alguns sinais de raiva passaram pelos olhos dela. 
- O amava? Ele pode ser bonito, pode ser boa pessoa, mas você nem o conhece. Sinceramente, você sabe disso tão bem quanto eu. Não há nenhuma conexão especial entre vocês, isso nem ao menos existiu.
- O que você saberia...
- Muito! Sei de você choramingando por esse castelo há anos sem fazer nada além de remoer o próprio fracasso. Sabe qual é a pior parte? Seu fracasso é não ter se casado. Casamento! Você pode virar uma soberana no mar com a força que possui e está chorando porque não casou com um homem que nem gostava de você.
- Eu não estou...
- Pare de choramingar primeiro, e levante desse chão sujo.
- Porque você...
- Será que eu vou ter que te levantar pelos braços como uma criança? Levante dai.
- Pare de...
- Vamos logo com isso, não aguento ver uma mulher chorando... - Ele se aproximou dela, pronto para levantá-la como uma criança.
- Pare de me dar ordens! - Gritou ela.
Os ouvidos de Shuo doeram e ele deu um paço para trás, se encostando na parede ao perder o controle das pernas. O ponto de equilíbrio de todos os seres se localiza no ouvido, e um grito de Lan Shang era suficiente para tirar a noção de encima e embaixo de qualquer ser.
- Oh - resmungou ele - finalmente alguém mostrou alguma reação além de choramingar.
- Quem você pensa que é para falar dessa maneira comigo? O que você sabe sobre mim? - A voz dela tentava soar forte, mas estava quebrada. Assim como ela.
- Sei o que todos sabem, o que todos veem. Uma jovem amarga e irritante, choramingando pelos cantos por ter levado um fora.
Ela grasnou de um jeito nada feminino e avançou contra ele, empurrando-o contra parede com toda força que tinha. Shuo mal sentiu o toque, sendo um soldado com muito mais força física que ela, mas deixou ela descarregar a raiva sem se importar.
Tomou um tempo estudando o rosto dela riscado de lágrimas. Ela era bonita, mesmo chorando. A respiração dela se tornava cada vez mais rápida enquanto o choro dela aumentava. Ele lutava contra a vontade de abraçá-la, mas lembrou do aviso de Yanda quando chegou na tribo. Aquela princesa era mais frágil do que parecia.
- Todo esse tempo... o que eu faria depois? Foi humilhante... e eu me tornei tão inútil... deveria... voltar e cantar? Até me acharem outro noivo? O que eu sou... um ornamento? Tudo... sempre... eu só queria...
- O que você queria?
- Eu queria... - ela soluçou.
- Ninguém vai saber se você não disser o que quer.
- Eu queria... o que eu queria... - O choro dela se tornava mais intenso.
- O que você queria, princesa? O que você quer?
- Eu quero sair! - Ela gritou novamente. Shuo sentiu outro baque nos ouvidos, mas já estava preparado daquela vez e conseguiu não gemer de dor.

- Sair de onde? - Ele continuou, com a voz grave.
- Sair! Disso! De tudo! Do castelo! Da prisão que é o castelo! Dos chás e das festas! Sair desse lugar! Sair da minha pele!
- Você quer sair da sua pele?
- Sim! Eu não quero ser a princesa, não quero ser a jovem amarga que chora! Eu quero sair e quero fazer coisas e nunca mais quero falar com ninguém! Eu quero ir pro mar e pro ar e quero sair! Eu não quero que me olhem com pena!
- Então saia. - A voz dele era baixa. Ela congelou.
- O que...?
- Saia. Simplesmente saia. Quer outro nome? Escolha. Outra identidade? Invente. Simplesmente.
- Como eu...
- Ninguém vai prestar atenção se você sumir hoje a noite. Depois, só se esconder. Sua rainha já foi embora.
- E se...
- Você sabe se defender. Pode gritar.
- Mas eu...
- Venda essas jóias em seu cabelo.
- Depois...
- Faça novos amigos. Conheça lugares.
- Onde...
- Pode ir pro mundo humano. Para a tribo os espíritos. Se quiser vir para a tribo do fogo, pode ficar no meu quarto.
Ela piscou, olhando verdadeiramente para ele pela primeira vez. Estranhamento Shuo corou, coisa que não costumava fazer. A beleza dela era impactante demais, o suficiente para que ele tivesse sonhado com ela depois de tê-la visto apenas uma vez.
Lan Shang notou que mantinha as mãos no peito dele e se afastou, corando intensamente.
- N-não é uma b-boa ideia. - Ela disse, fracamente.
- Hm? - Ele respondeu, aéreo.
- Eu devo ir. - Lan Shang continuava sussurrando.
Ela se voltou para sair e Shuo teve o impulso de segurar seu braço e fazê-la ficar, mas se conteve. As palavras de Yanda gravaram em seu cérebro como ferro em chamas: não force nada com ela, jamais.
Ela se deteve sozinha depois de dois passos, virando levemente o rosto para ele. O suficiente para que ele visse o brilho em seus olhos.
- Obrigada. - disse ela.
E partiu.

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