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Jane acordou com os gritos de “Feliz Natal!” vindos da rua. Sentou-se na cama e puxou a
camiseta. Estava molhada de suor. Ela tivera um sonho. Um pesadelo, na verdade. Estava
deitada, com Ziggy parado ao seu lado, vestindo o pijama curto, sorrindo para ela, um pé
em seu pescoço.
“Pare com isso, Ziggy, não consigo respirar!”, ela tentava dizer, mas ele parara de sorrir e
a estudava com um interesse benevolente, como se estivesse fazendo um experimento.
Ela levou a mão ao pescoço e respirou fundo várias vezes.
Foi só um sonho. Os sonhos não querem dizer nada.
Ziggy estava na cama. As costas quentes coladas nas de Jane. Ela se virou para ficar de
frente para o filho e tocou com a ponta de um dedo a pele delicada logo acima da maçã do
rosto do menino.
Ele ia dormir na própria cama e acordava na dela. Ninguém se lembrava de como ele fora
parar ali. Vai ver era mágica, concluíram.
“Vai ver uma bruxa boa me carrega toda noite”, dizia Ziggy, de olhos arregalados mas com
um sorrisinho, porque já parara de acreditar completamente naquele tipo de coisa.
“Ele vai parar um dia”, dizia a mãe de Jane sempre que ela mencionava que toda noite
Ziggy ia para sua cama. “Ele não vai continuar fazendo isso quando tiver quinze anos.”
Havia uma sarda nova no nariz de Ziggy que Jane não notara. Ele tinha três sardas no nariz
agora. Elas formavam uma vela de barco.
Um dia uma mulher estaria deitada na cama ao lado dele e analisaria seu rosto adormecido.
Haveria pontinhos pretos de barba despontando em seu lábio superior. Em vez daqueles
ombros magros de garotinho, Ziggy teria um peito largo. Que tipo de homem seria?
“Ele vai ser um homem gentil, encantador, igualzinho ao seu avô”, dizia sua mãe
categoricamente, como se soubesse que isso era um fato comprovado.
A mãe de Jane achava que Ziggy era a reencarnação de seu adorado pai. Ou fingia acreditar
nisso. Era impossível saber até que ponto ela estava falando sério. O avô de Jane havia
morrido seis meses antes do nascimento de Ziggy, na mesma época em que sua mãe estava
lendo um livro sobre um garotinho que supostamente era a reencarnação de um piloto de caça
da Segunda Guerra Mundial. A ideia de que havia uma chance de o neto ser seu próprio pai
ficara na cabeça dela. Ajudara-a com o luto.
E, obviamente, não havia genro para se ofender com a história de que seu filho era na
verdade o avô de sua esposa.
Jane não chegava a dar corda a esse papo de reencarnação, mas também não se opunha.
Talvez Ziggy fosse o vovô. Às vezes, ela identificava um leve indício do avô no rosto do filho,
especialmente quando ele se concentrava. A testa se franzia da mesma forma.
Sua mãe ficara furiosa quando Jane ligara para lhe contar o que acontecera no dia da
orientação.
“É um absurdo! Ziggy nunca enforcaria outra criança! Esse menino nunca fez mal a uma
mosca. Ele é igualzinho ao seu avô. Lembra como ele não aguentava matar uma mosca? Sua
avó andava de um lado para outro, gritando ‘Mate logo, Stan! Mate logo a desgraçada!’”
Fizera-se silêncio então, o que significava que a mãe de Jane fora acometida por um ataque
de riso. Ela ria sem fazer barulho.
Jane esperara o ataque passar, até sua mãe finalmente voltar ao telefone e dizer com voz
trêmula:
“Ah, isso me fez bem. Rir é maravilhoso para a digestão. Agora, onde estávamos? Ah, sim!
Ziggy! Mas que pestinha! Não ele, é claro, a garotinha. Por que ela iria acusar o nosso
querido Ziggy?”
“Não sei”, dissera Jane. “Mas o problema é que ela não parecia uma peste. A mãe era meio
horrível, mas a filha parecia boazinha. Não uma peste.”
Ela ouviu a dúvida na própria voz, e sua mãe também.
“Mas, querida, você não pode achar que Ziggy realmente tentou enforcar outra criança.”
“Claro que não”, respondera Jane, e mudara de assunto.
Ela rearrumou o travesseiro e se ajeitou em uma posição mais confortável. Talvez
conseguisse dormir de novo.
“Ziggy vai acordar você assim que amanhecer”, dissera sua mãe, mas o menino não parecia
tão empolgado com o Natal naquele ano, e Jane se perguntou se falhara com ele de alguma
forma. Ela muitas vezes tinha uma sensação inquietante de estar de alguma maneira inventando
uma vida para ele, dando-lhe uma infância falsa. Esforçava-se ao máximo para criar pequenos
rituais e tradições de família para aniversários e festas. “Vamos pendurar a sua meia agora!”
Mas onde? Eles tinham se mudado muitas vezes para haver um lugar de praxe. No pé da cama?
Na maçaneta da porta? Ela se atrapalhava, e sua voz ficava estridente e tensa. Havia algo de
fraudulento naquilo. Os rituais não eram verdadeiros como os das outras famílias, compostas
por uma mãe, um pai e pelo menos um irmão. Às vezes Jane tinha a impressão de que Ziggy
poderia estar concordando com a farsa por sua causa, e que conseguia ler os pensamentos dela
e sabia que estava sendo enganado.
Jane observou o peito dele subindo e descendo.
Ele era tão lindo. De jeito nenhum tinha machucado aquela garotinha e mentido a respeito.
Mas todas as crianças são lindas dormindo. Até as horrorosas provavelmente ficavam
lindas quando dormiam. Como ela poderia saber com certeza que não fora ele? Alguém
realmente conhecia o próprio filho? Filhos eram pequenos estranhos, sempre mudando,
desaparecendo e se reapresentando aos pais. Novos traços de personalidade podiam surgir da
noite para o dia.
E, além disso...
Não pense nisso. Não pense nisso.
A lembrança esvoaçou como uma mariposa presa em sua mente.
Vinha se esforçando muito para se libertar desde que a menininha apontara para Ziggy. A
pressão no peito de Jane. O pavor aumentando, inundando sua mente. Um grito preso em sua
garganta.
As marcas eram pretas, roxas e vermelhas.
“Ela vai ficar com hematomas!”, dissera a mãe da menina.
Não, não, não.
Ziggy era Ziggy. Ele não podia. Não faria. Ela conhecia o filho.
Ele se mexeu. Suas pálpebras de veias azuladas estremeceram.
— Adivinha que dia é hoje — disse Jane.
— Natal! — gritou Ziggy.
Ele se sentou tão depressa que bateu a cabeça no nariz de Jane e ela caiu para trás no
travesseiro, as lágrimas escorrendo.
                                 _______

Thea: Sempre achei que havia alguma coisa meio estranha com aquela criança. Aquele Ziggy.
Uma coisa engraçada nos olhos dele. Meninos precisam de uma figura paterna. Sinto muito,
mas isso é um fato.
Stu: Deus do Céu, houve muito alvoroço por causa daquele tal de Ziggy. Eu não sabia em que
acreditar.

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