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Eram onze horas da manhã do primeiro dia da vida escolar de Ziggy.
Será que ele já tinha tomado o chá da manhã? Será que estaria comendo a maçã com
o queijo e os biscoitos de água e sal? O potinho com passas? Jane sentiu um aperto no
peito ao imaginá-lo abrindo a merendeira nova com todo o cuidado. Onde ele se sentaria?
Com quem conversaria? Ela esperava que Chloe e os gêmeos estivessem brincando com ele,
mas os dois poderiam muito bem estar ignorando Ziggy. Não era como se um dos gêmeos fosse
se aproximar dele, estender a mão e dizer: “Olá! Seu nome é Ziggy, não é? A gente se
conheceu há umas semanas brincando na casa de uma menina. Como vai?”
Ela se levantou da mesa da sala de jantar onde estava trabalhando e esticou os braços
acima da cabeça. Ele estaria bem. Todas as crianças iam para a escola. Elas sobreviviam.
Aprendiam as regras da vida.
Jane foi até a cozinha minúscula do novo apartamento e ligou a chaleira para preparar uma
xícara de chá que não estava muito a fim de tomar. Era só uma desculpa para dar um tempo na
contabilidade da Serviços de Hidráulica do Pete Perfeito. Pete podia ser um encanador
perfeito, mas não era lá tão bom em manter a papelada em ordem. A cada trimestre ela recebia
uma caixa de sapatos cheia de papéis amassados, borrados e com um cheiro estranho: faturas,
contas e recibos de cartão de crédito, a maioria dos quais não serviria para nada. Ela podia
imaginar Pete esvaziando os bolsos, catando com a mão gorda todos os recibos espalhados no
console do carro, andando pela casa atrás de qualquer pedaço de papel que pudesse encontrar
antes de enfiar tudo em uma caixa de sapatos com um grande suspiro de alívio. Missão
cumprida.
Ela voltou para a mesa da sala de jantar e pegou o recibo seguinte. A mulher de Pete
Perfeito gastara trezentos e trinta e cinco dólares com a esteticista, onde desfrutara de uma
“limpeza de pele clássica”, “pedicure de luxo” e depilação na virilha. Que sorte para a mulher
de Pete Perfeito. Em seguida havia um bilhete de autorização não assinado para uma excursão
escolar ao Zoológico Taronga no ano anterior. No verso do bilhete, uma criança escrevera a
lápis de cera roxo: ODEIO O TOM!!!
Jane examinou o bilhete de autorização.
Poderei/não poderei participar da excursão na qualidade de pai/mãe voluntário/a.
A mulher de Pete Perfeito já marcara “não poderei”. Estaria muito ocupada depilando a
virilha.
Ela amassou o recibo e o bilhete de autorização e voltou para a cozinha.
Ela poderia ser uma mãe voluntária se Ziggy algum dia participasse de uma excursão.
Afinal, era por isso que inicialmente decidira ser guarda-livros, para ser “flexível” para o
filho, e “conciliar maternidade e carreira”, embora sempre se sentisse tola e uma farsa quando dizia coisas assim, como se não fosse realmente mãe, como se toda a sua vida não passasse de
uma fraude.
Seria divertido participar de novo de uma excursão escolar. Ela ainda se lembrava da
empolgação. Os doces no ônibus. Jane poderia observar disfarçadamente Ziggy interagir com
as outras crianças. Ter certeza de que ele era normal.
Claro que ele era normal.
Ela pensou de novo, como fizera durante a manhã inteira, nos envelopes rosa-claros. Tantos
deles! Não tinha importância ele não ter sido convidado para a festa. Ele era muito pequeno
para ficar magoado, e as crianças ainda nem se conheciam, de qualquer forma. Era bobagem
pensar naquilo.
Mas a verdade era que estava profundamente magoada por Ziggy, e se sentia responsável
de alguma forma, como se ela tivesse estragado tudo. Sentira-se pronta para esquecer o
incidente no dia da orientação, mas no momento o assunto não saía da sua cabeça.
A chaleira ferveu.
Se Ziggy realmente tivesse machucado Amabella, e se voltasse a fazer uma coisa como
aquela, nunca seria convidado para festa nenhuma. As professoras chamariam Jane para uma
reunião. Ela precisaria levá-lo a um psicólogo.
Teria que revelar em voz alta todos os seus medos secretos em relação a Ziggy.
Sua mão tremeu ao servir a água quente na xícara.
“Se Ziggy não for convidado, Chloe também não vai”, dissera Madeline no café aquela
manhã.
“Por favor, não faça isso”, dissera Jane. “Você só vai piorar as coisas.”
Mas Madeline limitou-se a erguer as sobrancelhas e dar de ombros.
“Eu já avisei Renata.”
Jane ficara horrorizada. Assim Renata teria mais motivos para não gostar dela. Jane
arranjaria uma inimiga. A última vez que tivera alguma coisa parecida com um inimigo, estava
no primário. Nunca lhe passara pela cabeça que mandar o filho para a escola seria como
voltar à escola também.
Talvez devesse tê-lo obrigado a pedir desculpas naquele dia, e se desculpado também.
“Desculpe”, poderia ter dito a Renata. “Desculpe mesmo. Ele nunca fez nada parecido. Pode
deixar que isso não vai se repetir.”
Mas não adiantava. Ziggy dissera que não tinha feito aquilo. Ela não poderia ter reagido de
forma diferente.
Levou a xícara de chá para a mesa da sala de jantar, sentou-se diante do computador e
desembrulhou mais um chiclete.
Certo. Bem, ela se ofereceria como voluntária em todas as atividades da escola.
Aparentemente, o envolvimento dos pais fazia bem à educação dos filhos (embora sempre
tivesse desconfiado de que isso era propaganda promovida pelas escolas). Jane tentaria fazer
amizade com as outras mães, além de Madeline e Celeste, e se esbarrasse com Renata, seria educada e simpática.
“Isso tudo vai ser esquecido em uma semana”, dissera seu pai no café aquela manhã quando
discutiam sobre a festa.
“Ou vai explodir”, retrucara Ed, o marido de Madeline. “Agora que a minha mulher está
envolvida.”
A mãe de Jane rira como se conhecesse Madeline e suas propensões havia anos. (Sobre o
que elas tinham passado tanto tempo conversando na praia? Jane se encolheu mentalmente de
vergonha ao imaginar a mãe revelando todas as suas preocupações em relação à vida da filha:
Ela não arranja um namorado! Está tão magrinha! Não quer fazer um corte de cabelo
decente!)
Madeline ficara brincando com a pesada pulseira de prata no braço.
“Bum!”, dissera ela de repente, e girara as mãos em direções opostas para demonstrar uma
explosão, os olhos arregalados. Jane rira, mesmo enquanto pensava: Ótimo! Virei amiga de
uma louca.
A única razão pela qual Jane tivera uma inimiga no primário foi por assim ter sido
decretado por uma menina bonitinha e carismática chamada Emily Berry, que sempre usava
prendedores vermelhos de joaninha no cabelo. Seria Madeline a versão de quarenta anos de
Emily Berry? Champanhe em vez de limonada. Batom vermelho-vivo em vez de brilho labial
sabor morango. O tipo de garota que alegremente criava problemas e as pessoas ainda assim
gostavam dela.
Jane balançou a cabeça de um lado para outro para organizar as ideias. Aquilo era ridículo.
Ela era adulta. Não ia parar na sala da diretora como se tivesse dez anos. (Emily tinha ficado
na cadeira ao lado de Jane, chutando as suas pernas, mascando chiclete e sorrindo para ela
sempre que a diretora desviava o olhar, como se aquilo tudo fosse uma grande brincadeira.)
Certo. Foco.
Ela pegou o documento seguinte da caixa de sapatos de Pete, o Encanador, e segurou-o com
a ponta dos dedos. O papel estava meio grudento. Era uma fatura de um fornecedor atacadista
de materiais hidráulicos. Muito bem, Pete. Esse realmente tem relação com a sua empresa.
Ela pôs as mãos no teclado. Vamos. Pronto, preparar, já. Para que a parte de seu trabalho
envolvendo inserção de dados rendesse e fosse minimamente suportável, ela precisava ser
rápida. A primeira vez que um contador lhe passara um trabalho, ele lhe dissera que levaria de
seis a oito horas. Ela fizera em quatro e cobrara-lhe seis. Com o tempo, ficara ainda mais
rápida. Era como jogar no computador, vendo se podia bater o recorde a cada vez.
Não era o trabalho dos seus sonhos, mas ela gostava de transformar um monte de papéis
confusos em fileiras organizadas de números. Adorava ligar para os clientes, em sua maioria
pequenas empresas como a de Pete, e lhes dizer que encontrara uma nova dedução. E o melhor
de tudo: orgulhava-se de sustentar sozinha a ela e a Ziggy, mesmo que isso significasse às
vezes trabalhar noite adentro enquanto ele dormia.
Não era a carreira com a qual sonhara quando era uma ambiciosa adolescente de dezessete anos, mas no momento achava difícil se lembrar de já ter sido inocente e audaciosa o
suficiente para sonhar com certo estilo de vida, como se a pessoa pudesse escolher como as
coisas seriam.
Uma gaivota guinchou, e, por um momento, Jane ficou confusa com o barulho.
Bem, ela escolhera aquilo. Escolhera morar perto da praia, como se tivesse tanto direito
quanto qualquer pessoa. Poderia recompensar a si mesma por duas horas de trabalho com um
passeio na praia. Um passeio na praia no meio do dia. Poderia voltar ao Blue Blues, comprar
um café e depois tirar uma foto pretensamente artística da xícara apoiada em uma cerca com o
mar ao fundo e postá-la no Facebook com a legenda: Pausa do trabalho! Que sorte! As
pessoas escreveriam: Inveja!
Se exibisse no Facebook como sua vida era perfeita, talvez também começasse a acreditar.
Ou poderia até postar: Que ódio!!! Ziggy foi o único da turma a não ser convidado para
uma festa de aniversário! Grrrr. E todo mundo escreveria coisas consoladoras, tipo: Como
assim? e Ai, coitadinho do Ziggy!
Ela poderia reduzir seus medos, transformá-los em pequenas atualizações de status inócuas
que apareceriam na linha do tempo de seus amigos.
Então ela e Ziggy seriam pessoas normais. Talvez ela até saísse com alguém. Deixaria a
mãe feliz.
Jane pegou o celular e leu a mensagem que sua amiga Anna lhe mandara no dia anterior.
Sabe o Greg? O meu primo q vc conheceu qdo a gente tinha 15 anos? Tá morando em
Syd. Quer seu tel pra te convidar p/ uma bebida! OK? (Ele está mto gato. Tem os meus
genes! Rsrs.) Bj.
Certo.
Ela se lembrava de Greg. Ele era tímido. Baixinho. Ruivo. Tinha feito uma piada boba que
ninguém entendeu, e depois, quando todo mundo perguntou “Hein? Hã?”, ele disse: “Deixem
para lá!” O episódio ficara na sua cabeça porque ela sentira pena dele.
Por que não?
Ela sobreviveria a uma bebida com Greg.
Estava na hora. Ziggy já ia para a escola. Ela morava perto da praia.
Respondeu a mensagem: Ok. Bj.
Tomou um gole de chá e colocou as mãos no teclado.
Seu corpo reagiu. Ela nem estava pensando na mensagem. Estava pensando nos recibos de
Pete, o Encanador, para ralos e tampas.
Uma violenta onda de náusea a fez se curvar, a testa encostada na mesa. Tapou a boca com
a mão. O sangue fugiu da sua cabeça. Ela sentia o cheiro. Podia jurar que era real, que estava
ali no apartamento.
Às vezes, se Ziggy mudava de humor muito depressa, de repente, passando de alegre a
furioso, ela sentia aquele cheiro nele.
Jane se endireitou um pouco, prestes a vomitar, e pegou o celular. Digitou a mensagem para Anna com os dedos trêmulos: Mudei de ideia! Não dê o meu número!
A resposta foi quase imediata:
Tarde demais. ☺

                           ________

Thea: Ouvi dizer que Jane teve um “caso” com um dos pais. Não sei qual. Só sei que não era o meu marido.
Bonnie: Não teve, não.

Carol: Sabiam que tinha um homem no Clube do Livro Erótico delas? Não o meu marido, graças a Deus. Ele só lê a Golf Australia.

Jonathan: Sim, eu era o homem no suposto Clube do Livro Erótico, só que isso era só uma brincadeira. Era um clube do livro. Um clube do livro absolutamente normal.

Melissa: Jane não teve um caso com o pai que ficava em casa?

Gabrielle: Não foi Jane que teve o caso! Sempre pensei que ela fosse evangélica. Sapato baixo, nada de joias nem de maquiagem. Mas com um corpo bonito! Nem um grama de gordura. Era a mãe mais magra da escola. Nossa, estou com fome. Já experimentaram a dieta 5:2? Hoje é
meu dia de fazer jejum. Estou morrendo de fome

Big Little LiesOnde histórias criam vida. Descubra agora