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Samantha: Olha, é preciso entender a demografia daqui. Desde o início, havia os operários.
Temos muitos operários em Pirriwee. Como o meu Stu. Sal da terra. Ou do mar, porque todos
eles surfam, é claro. A maioria nasceu e foi criada aqui. Também há os alternativos. Hippies.
E faz uns dez anos que todos esses executivos ricos e esses banqueiros babacas se mudaram
para cá e construíram umas mansões enormes nos penhascos. Porém, só há uma escola de
ensino fundamental para todas as crianças! Por isso, nos eventos escolares há um encanador,
um banqueiro e um litoterapeuta em uma roda tentando conversar. É muito engraçado. Não me
admira ter dado confusão.
                            _______

eleste chegou da gincana e encontrou o carro da empresa de faxina estacionado na frente
de casa. Quando girou a chave na porta para entrar, o aspirador rugia no andar de cima.
Ela foi para a cozinha e preparou uma xícara de chá. Os faxineiros iam toda sexta-
feira de manhã. Cobravam duzentos dólares e deixavam tudo lindo e brilhando.
A mãe de Celeste ficara pasma ao saber quanto a filha gastava com faxina. “Querida, vou aí
ajudar uma vez por semana”, dissera ela. “Você economiza o dinheiro para outra coisa.”
Sua mãe não conseguia entender quanto Perry era rico. Quando visitou pela primeira vez a
mansão com vista panorâmica, ela percorrera a casa com a expressão educada e tensa de uma
turista assistindo a uma manifestação cultural antagônica. Por fim, reconhecera que a casa era
muito “arejada”. Para ela, duzentos dólares era uma quantia absurda de dinheiro para gastar
com algo que a pessoa podia — devia — fazer por conta própria. Ela ficaria horrorizada se
tivesse como ver Celeste naquele momento, sentada, enquanto outras pessoas limpavam sua
casa. A mãe dela nunca se sentava. Chegava em casa do turno da noite no hospital e ia direto
para a cozinha preparar o café da manhã da família, enquanto o pai de Celeste lia o jornal e
ela e o irmão brigavam.
Puxa vida, as brigas que Celeste tinha com o irmão... Ele batia nela. E ela sempre revidava.
Talvez, se não tivesse crescido com um irmão mais velho, se não tivesse sido criada com
aquela mentalidade de australiana durona: se um garoto lhe bater, você revida! Quem sabe se
ela tivesse chorado baixinho da primeira vez que Perry batera nela, aquilo não teria
continuado a acontecer.
O aspirador foi desligado, e ela ouviu a voz de um homem, acompanhada de uma sonora
gargalhada. Os faxineiros eram um jovem casal coreano. Trabalhavam em absoluto silêncio
quando Celeste estava em casa, então não deviam tê-la ouvido entrar. Só lhe exibiam suas
posturas profissionais. Ela se sentia irracionalmente magoada, como se quisesse ser amiga
deles. Vamos rir e bater papo enquanto vocês limpam a minha casa.
Ouviam-se passos apressados no andar de cima, e risadinhas infantis.
Parem de se divertir na minha casa. Limpem.
Celeste tomou seu chá. A xícara machucou seu lábio dolorido.
Ela sentiu ciúme dos faxineiros.
Lá estava ela, na sua mansão, emburrada.
Largou o chá, tirou o cartão Amex da carteira e abriu o laptop. Entrou no site da World
Vision e clicou em fotos de crianças disponíveis para serem apadrinhadas: produtos em uma
prateleira para mulheres brancas e ricas como ela. Ela já apadrinhara três crianças, e tentara
fazer os meninos se interessarem pela prática.
“Olha! Aqui está a pequena Blessing do Zimbábue. Ela tem que andar quilômetros para
buscar água. Vocês só precisam ir até a torneira.”
“Por que ela simplesmente não saca dinheiro no caixa eletrônico?”, perguntara Josh. Foi
Perry quem respondera, explicando pacientemente sobre gratidão e ajudar as pessoas carentes.
Celeste apadrinhou mais quatro crianças.
Escrever cartas e cartões de aniversário para todas levaria horas.
Ingrata.
Merecia apanhar. Merecia.
Ela beliscou as coxas até ficar com lágrimas nos olhos. Teria novos hematomas no dia
seguinte. Hematomas que fizera em si mesma. Ela gostava de vê-los mudar de aspecto, se
intensificando, escurecendo e depois sumindo aos poucos. Era um hobby. Um interesse dela.
Era bom ter um interesse.
Ela estava perdendo o juízo.
Visitou sites beneficentes que exibiam toda dor e todo sofrimento que o mundo tinha a
oferecer: câncer, distúrbios genéticos raros, pobreza, violação dos direitos humanos,
desastres naturais. Ela doou sem parar. Em vinte minutos, tinha doado vinte mil dólares do
dinheiro de Perry. O que não lhe deu nenhuma satisfação, orgulho, nem prazer. Apenas náusea.
Ela fazia doações a pessoas carentes enquanto tinha uma jovem de quatro esfregando os cantos
encardidos do boxe do seu chuveiro.
Limpe sua própria casa, então! Demita os faxineiros. Mas isso também não iria ajudá-
los, iria? Doe mais dinheiro para a caridade! Doe até dizer chega.
Ela gastou mais cinco mil dólares.
Será que isso prejudicaria a situação financeira deles? Ela não sabia dizer. Perry cuidava
do dinheiro. Era a especialidade dele, afinal. Não que escondesse alguma coisa dela. Sabia
que o marido examinaria feliz da vida todas as contas e carteiras de investimento deles com
Celeste, se ela assim quisesse, mas a ideia de saber os números exatos lhe deixava tonta.
“Abri a conta de luz hoje e fiquei com vontade de chorar”, dissera-lhe Madeline outro dia,
e Celeste pensara em se oferecer para pagar a conta para a amiga, mas é claro que Madeline
não queria sua caridade. Ela e Ed tinham uma situação confortável. Mas havia tantos níveis
diferentes de “confortável” e, no nível de Celeste, nenhuma conta de luz poderia fazê-la chorar. Enfim, não se podia simplesmente distribuir dinheiro aos amigos. Podia-se pagar a
conta do almoço ou do café sempre que possível, mas mesmo então era preciso ter cuidado
para não ofender, não fazer isso com tanta frequência de forma que parecesse exibicionismo,
como se o dinheiro fizesse parte dela, quando na verdade o dinheiro era de Perry, e não tinha
nada a ver com Celeste. Não passava de sorte, como a sua aparência. Não era uma decisão
que ela tivesse tomado.
Uma vez, quando estava na faculdade, em um dia de ótimo humor, entrara animadamente na
sala de aula e sentara-se ao lado de uma garota chamada Linda.
“Bom dia!”, dissera.
Uma expressão engraçada de consternação passara pelo rosto da menina.
“Ah, Celeste”, resmungara ela. “Não posso lidar com você hoje. Não quando estou me
sentindo uma merda e você entra aqui com essa cara de... você sabe, essa cara assim.” Ela
indicou o rosto de Celeste como se estivesse se referindo a algo repulsivo.
As garotas em volta caíram na gargalhada, como se alguma coisa hilária e subversiva
finalmente tivesse sido dita em voz alta. Elas não paravam de rir, e Celeste dava um sorriso
amarelo, abobalhado, porque como mais poderia reagir? O comentário doeu como uma
bofetada, mas ela precisava se comportar como se tivesse sido um elogio. Tinha que se sentir
agradecida. Nunca pareça estar muito feliz, ela disse a si mesma. Incomoda.
Agradecida, agradecida, agradecida.
O aspirador recomeçou lá em cima.
Durante todos os anos que estavam juntos, Perry nunca fizera qualquer comentário sobre
como ela escolhia gastar o dinheiro deles (dele), a não ser para lembrá-la de vez em quando,
com suavidade e humor, que podia gastar mais se quisesse.
“Você sabe que podemos comprar uma nova”, dissera ele uma vez quando a encontrara na
lavanderia esfregando furiosamente uma mancha na gola de uma camisa de seda.
“Eu gosto dessa”, respondera ela.
(A mancha era de sangue.)
Quando Celeste parou de trabalhar, sua relação com o dinheiro mudou. Ela o gastava do
jeito que usava o banheiro dos outros: com cuidado e educação. Sabia que aos olhos da lei e
da sociedade estava (supostamente) contribuindo para a vida deles administrando a casa e
educando os meninos, mas mesmo assim jamais gastava o dinheiro de Perry da maneira que no
passado fizera com o seu.
Certamente nunca gastara vinte e cinco mil dólares em uma única tarde. Será que ele iria
comentar? Ficar bravo? Tinha sido por isso que fizera aquilo? Às vezes, nos dias em que
conseguia sentir a raiva dele prestes a explodir, quando sabia que era só uma questão de
tempo, quando sentia o cheiro no ar, ela o provocava de propósito. Fazia aquilo acontecer,
para que acabasse logo.
Mesmo enquanto doava dinheiro para a caridade, será que esse gesto era só mais um passo
na dança doentia do casamento deles?
Não era como se isso não tivesse precedentes. Eles iam a bailes de caridade e Perry fazia
lances de vinte, trinta, quarenta mil dólares com um aceno de cabeça e sem sorrir. Mas a
questão não era doar, e sim vencer. “Nunca vão dar um lance maior que o meu”, dissera ele
uma vez.
Perry era generoso. Se descobria que um parente ou um amigo estava passando por
dificuldades, de forma discreta fazia um cheque ou uma transferência, rejeitando
agradecimentos com um gesto, mudando de assunto, aparentemente encabulado com a
facilidade com que podia resolver a crise financeira de outra pessoa.
A campainha tocou, e ela foi atender a porta.
— Sra. White?
Um homem forte, barbado, entregou-lhe um enorme buquê de flores.
— Obrigada — agradeceu Celeste.
— Alguém é uma mulher de sorte! — disse o homem, como se nunca tivesse visto alguém
receber um buquê de flores tão impressionante.
— Sou mesmo!
O cheiro doce e forte fez cócegas em seu nariz. Antes, adorava receber flores. Mas
atualmente era como receber uma série de tarefas: encontre o vaso. Corte o caule. Arrume-as
desse jeito.
Ingrata.
Ela leu o cartãozinho.
Te amo. Desculpe. Perry.
Escrito com a letra do florista. Era sempre muito estranho ver as palavras de Perry
transcritas por outra pessoa. Será que o florista se perguntou o que o marido dela havia feito?
Que transgressão conjugal ele tinha cometido na noite anterior? Chegar em casa tarde?
Ela levou as flores para a cozinha. O buquê tremia, ela reparou, como se estivesse tiritando
de frio. Segurou o caule com mais força. Podia jogá-las na parede, mas isso não seria muito
gratificante. Cairiam inúteis no chão. Haveria montes de pétalas empapadas no tapete. Ela
teria que catá-las antes que os faxineiros descessem.
Caramba, Celeste. Você sabe o que tem que fazer.
Ela se lembrou do ano em que fez vinte e cinco anos: o ano em que estreou no tribunal, em
que comprou o primeiro carro e investiu no mercado de ações pela primeira vez, o ano em que
disputava uma partida de squash todo sábado. Celeste tinha tríceps maravilhosos e dava uma
gargalhada sonora.
Foi o ano em que conheceu Perry.
A maternidade e o casamento transformaram-na em uma versão mole e flexível da garota
que ela fora antes.
Colocou as flores com cuidado na mesa da sala de jantar e voltou para o laptop.
Digitou as palavras “terapeuta de casal” no Google.
Então parou. Apagou as palavras. Não. Já havia tentado isso. Não era uma questão de trabalho doméstico e mágoas. Ela precisava falar com alguém que soubesse que pessoas
agiam daquela forma; alguém que fizesse as perguntas certas.
Ela sentia as bochechas queimando quando digitou as duas palavras vergonhosas:
“Violência.” “Doméstica.”

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