1 - Zalar

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Parecia um dia comum como qualquer outro. Os dois pequenos sóis geminados brancos brilhavam, mas no horizonte parecia estar-se formando uma tempestade para mais tarde, nada que fugisse da normalidade da atual estação. Com a minha aproximação a porta automática deslizou sem ruído e saí para os jardins da casa de meu pai, respirando fundo e com intenso prazer quando o ar fresco bateu em cheio no meu rosto, estacando por um instante enquanto o fazia, antes de continuar andando. As flores estavam maravilhosas, meu pai cuidava delas com esmero, e seu perfume almiscarado enchia a brisa. Mas queria andar, e tomei um caminho estreito que ia aberto por entre sebes baixas de folhas azuis escuras e ondulantes pela brisa.

Trajava o modelo em voga na cidade naquela época, uma túnica longa e reta muito leve que descia quase até os pés, aberta dos lados, presa na cintura por um largo cinto de tecido dourado torcido, e os cabelos longos e negros presos num rabo alto; mas era bom não estar na cidade. Nossas cidades eram barulhentas, poluídas, convulsionadas pelo excesso de pessoas que espremiam-se, correndo apressadas o tempo todo, semi-débeis e apáticas para a vida, distraindo-se dela com seus óculos de realidade virtual... era imensamente bom ter retornado para a casa de meu pai.

O caminho das sebes terminara e me levava agora para um campo aberto, onde as plantações de harbiscum de meu pai faziam divisa com a de ferramain do vizinho,o violeta e o dourado de uma e outra causando ao longe um contraste magnífico. Parei um instante para admirar e sorri. Tanta beleza, frescor e perfume não podiam passar incólumes por mim. Lembrei-me de quando era menina e me embrenhava no meio da plantação, o harbiscum perfumado soltando seu odor doce nas minhas roupas e manchando-nas de lilás, o leve visco aderindo à pele, que ficava com o toque do veludo... e não resisti, correndo e me embrenhando por entre os caules - e a sensação ainda era maravilhosa. Divertida e distraída, corri e corri até que me cansasse, e parasse para olhar para trás. Ao longe, vi a casinha branca com o escuro teto formado pelos painéis de captação de energia solar, enquanto arfava, sorrindo. Agora havia crescido e estava mais alta que os caules, já não precisava mais erguer-me nas pontas dos pés para encontrar o caminho de casa como antes. Voltei-me em frente e continuei andando mais alguns metros antes de parar novamente, sentindo-me muito contente. Ao longe ouvi um trovão, e uma brisa diferente soprou, fazendo os caules se dobrarem docemente, e eles roçaram de leve o meu rosto - como era bom estar de volta! Estiquei e olhei para os meus braços quase completamente tatuados, já um pouco sujos de visco lilás, e passei as mãos em um e em outro, sentindo o toque macio; era muito bom, e eu sorri com as recordações que aquilo trazia.

Não falei ainda que sou quase inteiramente marcada com desenhos e símbolos, mas, bem, é o costume entre meu povo. As crianças são tatuadas desde muito pequenas e na verdade não há um só adulto de pele virgem entre nós. Escrevemos na pele tudo pelo qual passamos na vida, para que, vendo os símbolos, não nos esqueçamos de quem somos nem de onde viemos. Geralmente os muito velhos ou os que já sofreram muito praticamente já não têm mais espaço de pele virgem no corpo, e, bem, eu era jovem ainda. O sol tocava os muitos símbolos nos meus braços e o harbiscum os perfumava, e tinha orgulho deles. Cada um representava uma coisa, um fato, uma etapa, um perigo, uma conquista, uma doença, uma cura. Na verdade os desenhos começavam nas laterais de meu rosto e desciam já até quase os pés, podendo serem vistos pelas aberturas na túnica negra, e, bem, eu não tinha nem mesmo ainda chego aos 30 anos, o que dá uma breve ideia de que a vida não havia sido muito boa para comigo... mas nada disso importava mais. Eu estava feliz por estar de volta. Tinha certeza de que agora tudo seria diferente. Amava muito a meu pai, apesar da longa separação que havíamos enfrentado, e ele me amava como a uma estrela, como dizemos nos referindo àquilo que amamos mais, e recomecei a andar, contente, rindo sozinha, afastando-me mais e mais.


De repente tive uma sensação estranha, como se mais à frente uma porção de caules roxos tivesse se dobrado em direção contrária ao vento. Parei um instante e tentei observar e ouvir algo, mas não chegou-me dali nem imagem nem som. Voltei-me de novo para a casa, que agora mal se via na distância. Do outro lado, a plantação de ferramain parecia longínqua e escura, com a tempestade logo acima de si. Resolvi que era melhor voltar, e pus-me a andar na direção contrária da que ia até aquele momento. Num rompante, tive a mesma sensação estranha novamente, só que vinda de outro lado. Virei rapidamente a cabeça, tão rápido que meu próprio rabo-de-cavalo me chicoteou o rosto, mas novamente não vi nada. Apertei o passo, um pouco incomodada. O vento começou a soprar do meu rosto para trás, mas em um ponto e outro atrás de mim os caules se dobravam sempre na direção contrária ao vento. Um alarme súbito despertou dentro de mim, me mandando correr, e assim que o fiz, persebi que os caules atrás de mim começaram a se mover mais rápido também, como se algo pequeno viesse correndo por entre eles atrás de mim. Corri ainda mais rápido, mas não consegui com isso me esquivar de uma mão, invisível e fria, que pareceu roçar em um dos meus braços. Gritei. Mas não havia por perto quem pudesse me ouvir.

Correndo em pânico de repente tropecei em algo e caí, e assim que ergui o rosto vi os caules se abrindo logo acima de mim como se dentre deles saísse um ser invisível. Soltei outro grito e levantei-me como pude, mas logo mãos me agarraram por todos os lados, e gritei em desespero, porque não via o que era. Mãos, pequenas mãos frias de longos dedos me segurando o corpo por todos os lados; e de repente os seres se tornaram visíveis, para meu maior pavor: Eram como os demônios de nossas antigas lendas, e não que eu um dia houvesse sido supersticiosa, mas conhecia as histórias, como todo mundo: Os demônios que roubavam pessoas. Os muito idosos as contavam, os tratados e as projeções holográficas fictícias estavam repletos deles. Eram pequenos, de pele lisa e viscosa de cor cinza, grandes olhos na cabeça larga e calva, quase sem narizes nem boca, os corpos magros, os braços longos e finos, aparentemente sem sexo apesar de estarem nus e as pernas arqueadas com joelhos ao contrário. Tentei em pânico escapar, mas eram muitos, não consegui sequer pôr-me em pé; e quando de repente um deles sacou algo parecido a uma arma e me dardejou com ela algo na nuca, instantaneamente não vi mais nada e caí sem sentidos no chão.

***

Notas Finais

Nossa personagem parecia levar uma vida pacata em seu planeta, desconhecendo o restante do universo, vivendo numa sociedade baseada em lendas embora tivessem chego a um grau alto de desenvolvimento tecnológico.

O que teria acontecido a ela? Seriam realmente "demônios" que a haviam capturado? E qual havia sido o seu propósito?

Mistérios a serem solucionados no próximo capítulo.

A Escrava de Lorde Balem  (terminada)Onde histórias criam vida. Descubra agora