5. A escrava e seu senhor

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Assim tendo ele dito, o salão transformou-se subitamente após um leve quadriculejar, no centro da grande cidade em que eu vivera grande parte da minha vida e que era capaz de reconhecer dispensando apresentações, e soltei um suspiro de susto. Tudo estava exatamente como antes, exceto por um detalhe: Não haviam pessoas, em lugar algum, e o silêncio era o de um sepulcro. Um pó preto e brilhante recobria todo o chão e por todos os lados víamos veículos abandonados, pacotes largados, bolsas e malas deixados para trás como se todos tivessem sido estranhamente tragados pelo chão sem ter tempo de ter feito absolutamente nada, e eu não compreendia.

- O que é isso? O que aconteceu? Onde estamos?

- Como eu disse... - e abriu teatralmente os braços - Foi colhido.

Olhei-o perplexa, mas compreendi ao menos parte, porque não era estúpida:

- Mas não estamos em Zalar, isso não é Zalar; é um tipo de holográfica fictícia.

- Exatamente. Porém, em tempo real - disse ele, parecendo satisfeito por eu conhecer ao menos alguma coisa de sua realidade.

- Isso não é verdade - respondi - Eu exijo ser retornada para o lugar de onde fui raptada. Exijo ser levada para casa!

Em seu rosto, que agora mantinha de perfil para mim, vi que sorria o seu sorriso melancólico, mantendo o olhar baixo, e novamente levou a mão até atrás da orelha, novamente fremindo o pequeno botão, e o cenário em que estávamos mudou-se para o jardim da casa de meu pai. Tudo parecia como no dia em que lá estive pela última vez, mas as flores estavam agora soterradas sob o pó negro brilhante. Os olhos se me marejaram e voltei-me para trás, em direção à porta da casa, para a qual corri chamando por meu pai, e assim que entrei, corri pelos cômodos chamando sem parar até chegar à cozinha, onde encontrei quebrada em mil pedaços sobre o chão a caneca em que meu pai sempre bebia, exatamente no lugar onde eu o deixara ao sair, como se tivesse sido pêgo por algo ou alguém enquanto tomava o chá da tarde. Tornei a sair de dentro da "casa" e voltei a passos largos para perto de Lorde Balem, enquanto falava-lhe quase gritando:

- O que você fez ao meu pai, seu demônio?

Ele ainda sorria, de olhos baixos, mas seu sorriso foi-se desvanecendo aos poucos e demorou para responder-me, não sem antes desligar a projeção e o espaço ao nosso redor tornar a ser o que era. Sua voz parecia um tom mais grave e rouca do que antes:

- Você precisará trabalhar a sua humildade, Inkailah; não se fala nesse tom e nesses termos com o Primado da Casa Abrasax.

- O que foi que você fez ao meu pai?? - eu repeti, no mesmo tom, sem importar-me com a ameaça implícita que havia em suas ultimas palavras.

- Diretamente, não movi contra ele um dedo - respondeu, após alguns instantes - Ele apenas serviu ao propósito para o qual havia sido semeado, o propósito para o qual existia: gerar lucro. Mas tranquilize-se, que tudo é feito de forma muito ética, e ele não sofreu, absolutamente, se é isso o que a incomoda.

Soltei um gemido alto, exclamando:

- Você os matou! Os matou a todos! Como pôde? - e cobri meu rosto com as mãos, em desespero.

- Muitos viviam uma vida miserável, e é um ato misericordioso o que lhes fazemos. Toda sociedade é uma hierarquia, uma pirâmide, e algumas vidas sempre valerão mais do que outras. Como a sua, por exemplo.

- Você é louco! Um assassino!

- Não - e dizendo isso ergueu-se, postando-se em frente a mim - Sou um industrial oferecendo às pessoas da parte superior da pirâmide mercadoria da mais alta qualidade para preencher a sua crescente demanda por mais tempo. Agora você não compreende, mas logo compreenderá. Há muito de nossa realidade que você ainda não conhece.

- Mas você fala como se nós fôssemos mercadoria sua, e nós não somos! Os zalarianos sempre fomos um povo livre, não temos dono! Não pertencemos a ninguém!

- Eu não diria mercadoria, mas sim matéria prima. E sim, vocês são sim, sempre foram, desde sua pré-história. Vocês foram criados apenas para a geração de lucro, esse é o seu propósito. Seu planeta insignificante foi semeado por nós, pelos Abrasax, por mim; e vocês ainda nos cantam e louvam como os deuses criadores descidos dos céus!

- Você não tem o direito!

- Eu crio a vida. E eu a destruo. Ela me pertence. Zalar me pertencia, e eu o colhi, pois estava na hora: O planeta já não tinha mais recursos para suportar uma população tão grande, estava maduro. É simples. Zalar me pertencia, assim como você me pertence agora - e dito isso, tentou tocar o meu braço, mas com um gesto rude fiz com que retirasse de mim sua mão. Com uma estranha resignação que parecia vir de uma longa vida embora fosse óbvio ser um homem ainda jovem apesar dos cabelos brancos nas têmporas e algumas linhas no rosto, e uma paciência de quem poderia esperar uma eternidade, ele recolheu a mão, sem ofender-se, pondo-se a movimentar os dedos como fazia, daquela sua forma lenta.

- Eu exijo voltar para casa! - insisti ainda, embora já soubesse que isso agora não fazia mais nenhum sentido.

- Acostume-se com a ideia de que sua casa agora é aqui. E seja-me grata por isso - disse, com aquele seu jeito frio e comedido.

Odiei-o profundamente naquele momento, e minha vontade era cuspir em seu rosto, mas parecia tão frio que talvez nem isso o atingisse, e eu necessitava desesperadamente atingi-lo, fazê-lo sofrer a dor que eu sentia naquele instante.

- Pretendo ficar aqui para acompanhar todas as etapas do refino de Zalar, portanto teremos um bom tempo você e eu aqui em Júpiter antes de retornarmos ao meu próprio planeta - disse ele, calmamente tornando a sentar-se no divã desta vez de costas para a vidraça - E creio que você terá tempo suficiente para entender todo o necessário, e o mais importante de tudo - e olhou-me com aqueles olhos inquisidores e profundos, que me despiam até o espírito - que agora você pertence a mim, embora já fosse assim desde antes de seu nascimento, em verdade, e você apenas o desconhecesse; você agora pertence a mim como uma escrava pertence a seu senhor.

***

Notas Finais

Aos poucos sendo introduzida na verdade sobre a vida e a existência, que ela, como todos os outros humanos do universo ignoram, Inkailah sente-se submergir num verdadeiro inferno. Suportará a verdade? Aceitará o seu destino?

Qual a necessidade de Lorde Balem em poupá-la ao invés de torná-la capital?

Por que ele a esclarece da verdade?

Curiosidades que nos levam à continuação dessa história.

A Escrava de Lorde Balem  (terminada)Onde histórias criam vida. Descubra agora