2. "O universo é muito vasto"

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Senti que acordava aos poucos, recobrando os sentidos devagar, mas a cabeça latejava e não abri os olhos. Retomando a consciência, a primeira coisa da qual me dei conta foi o perfume doce do harbiscum que estava mais pungente do que nunca, o que, conforme eu bem sabia, já devia estar sobre a pele há muitas horas, e isso de certa forma me reconfortou.

"Foi somente um pesadelo - pensei - e estou em casa, estou em segurança. Apenas adormeci, apenas isso", mas não abria os olhos porque doíam dentro das órbitas. "Devo ter passado mal e desmaiado", pensei para me acalmar. Respirei fundo e comecei a ne recordar do pesadelo que tivera: Os pequenos "demônios" saindo de dentro da plantação e me agarrando...imagine, que absurdo; essas coisas não existem, que absurdo...Mas havia mais. Eu tinha sonhado mais algumas coisas, mas não me lembrava bem... Parecia... Parecia que havia um homem jovem, todo de negro e cabelos ruivos, com uma longa capa e o rosto e as mãos sem nenhuma marca... Bobagem, isto não existia. E messe ponto juntei forças para abrir os olhos. Mas arrependi-me de tê-lo feito.

Vi-me num quarto a mim totalmente estranho, e embora fosse luxuoso, era tudo muito estranho, como se fosse de um outro mundo, de uma outra realidade, como uma projeção fictícia surreal que assistíamos nos cines, e me levantando muito rápido, tive uma vertigem e quase caí ao solo. Cambaleei até chegar a uma poltrona larga e estranha, amparando-me nela e voltei os olhos para a cama de onde saíra, para com pavor ver que não tinha pés e flutuava sozinha, mantendo-se a alguns centímetros do chão, de tempos em tempos soltando algo que como um brilho azul de sua parte inferior. Senti o quarto girar ao meu redor e caí sobre os joelhos, cobrindo a cabeça com os braços. Pelos meus deuses, que lugar era aquele, que coisas eram aquelas que jamais havia visto, como foi que havia vindo parar alí? Mas meus pensamentos foram interrompidos pela porta do quarto que de repente deslizou, abrindo-se, e uma mulher jovem entrou por ela, carregando uma bandeja. Ergui-me do chão assustada, arrastando-me para detrás da poltrona, o mundo ainda girando ao meu redor. Vendo o meu medo, a jovem mulher sorriu, levando a bandeja para uma mesa mais adiante e colocando-na alí.

- Não precisa se assustar - ela me disse - Não lhe farei mal. Aqui está sua comida. Você deve estar faminta. Dormiu por dois dias.

- Que... Que lugar é esse? Quem é você? O que estou fazendo aqui? - Ela me olhava sorrindo do meio do aposento, com as mãos entrelaçando-se calmamente na frente do corpo e o rosto muito calmo - E por que você não tem marcas?

Ouvindo isso, ela sorriu baixinho.

- Eu me perguntava porque você as tem - disse ela.

- Ora, por que... É o costume, por isso; é óbvio. Por que você não as tem? - repeti eu, agora de forma zangada, pois me irritava não saber o que estava acontecendo, e eu podia claramente ver que não tinha ela nenhuma, porque suas peças de roupa que lhe cobriam o tronco eram mínimas - Você por acaso não viveu? Você não tem passado?

Podia parecer absurdo, mas talvez por causa do mal estar que sentia e da confusão geral eu fixei-me nessa estranheza para não pensar nas outras, mas a mulher jovem me confundiu ainda mais quando me respondeu com as seguintes palavras:

- Não as tenho porque não sou do seu planeta, obviamente, já que percebo que deve ser um costume generalizado de onde veio, não é isso?

Senti de novo tudo girar e me segurei nas costas da poltrona alta para não cair, porque os joelhos se me fraquejavam e minhas pernas chegaram a se dobrar por um instante.

- Como assim não é do meu planeta? - gemi - Você só pode ser de Zalar, tanto quanto eu, oras...

- Pois não sou - ela riu, e parecia muito divertida com a nossa situação - Eu sou do planeta Mircalax, no quadrante 8 do sol Steklas. Pelo visto você se achava a coroa da criação, não é?

- Ela deve estar louca. Só pode estar louca. - eu sussurrava baixinho, passando mal.

- O universo é muito vasto e sinto informar que vocês, zalarianos, não são a única raça humana inteligente. Mas logo você verá isso tudo por si mesma. Agora acalme-se e coma. Vai se sentir bem melhor depois que comer e descansar um pouco - disse ela, fazendo um gesto amplo e teatral na direção da bandeja - Se desejar um banho ou roupas limpas, basta chamar que providenciarei. Sou sua criada de quarto enquanto estivermos a bordo.

Aquela conversa estava me fazendo mal, estava enjoada. Consegui apenas balbuciar:

- Não quero nada. Apenas quero ir para casa.

Nesse momento persebi que a mulher deixou de sorrir, pela primeira vez, olhando-me com olhos de condolências.

- Sinto dizer que talvez já não haja para onde voltar.

- Você é louca - insisti eu - Quem é você?

- Como todas as mulheres em Mircalax, chamo-me Mirca, obviamente, se é isso o que quer saber - e fez uma reverência exagerada - mas isso não vem ao caso. Empregados não precisam ser chamados pelo nome e é isso o que somos: Empregados. Mas insisto, coma e se sentirá melhor. Trouxe, como foi-me ordenado, do que temos de melhor para a senhora.

- E é por acaso nesse tal de, como se chama, Mircalax, que estamos agora? - meu enjoo aumentava. Isso tudo era loucura.

- Obviamente que não. Não servimos em nosso próprio mundo - deu alguns passos em direção à porta antes de parar - Se precisar de algo, basta chamar, que estou à sua disposição.

- Espere! - e Mirca interrompeu-se, voltando-se para mim - Você ainda não me disse que lugar é esse!

- Estamos no cruzador particular de Lorde Balem Abrasax, primado da Casa Abrasax.

A custo consegui contornar a poltrona larga e sentar-me nela. Recostei a cabeça e fechei os olhos longamente, segurando a cabeça com as mãos.

- Estamos num navio, é isso? - perguntei - Isso é um navio? Porque você disse que estávamos à bordo...

Ela fez silêncio. Achei que tivesse ido embora. Abri os olhos e a olhei, que me encarava com perplexidade, como se jamais tivesse ouvido a palavra "navio". Falei, irritada:

- Um meio de transporte, não é? Porque não estaríamos a bordo de uma casa, meus deuses, não acredito que isso está acontecendo, acho que enlouqueci - e enfiei o rosto nas mãos.

- Como Zalar era um lugar atrasado... - gemeu ela. E não persebi que usou o verbo no passado - Isso é um cruzador, uma nave. Estamos indo para Júpiter... - calou-se ao notar que eu chorava, e retirou-se quase sem ruído, sem preocupar-se de terminar o que dizia.

Baixinho eu suspirava para mim mesma:

"Ao redor dos sóis de Gemena Fav orbita apenas Zalar, apenas Zalar, não há outros planetas, não há, meus deuses, o que eu estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Eu não posso estar fora de Zalar, não é possível"

- Eu quero voltar para casa... Eu quero o meu pai!

E sozinha, eu chorei.

***

Notas Finais

Ela acordou não somente num local estranho, mas num mundo e numa realidade totalmente absurdos para os seus padrões, para os conceitos de tudo quanto crê e sabe... Como ela lidará com as novidades e as mudanças, o que será de sua vida e de tudo o que acreditava?

O que fazer quando nossa realidade desmorona?

Um convite para o próximo capítulo.

A Escrava de Lorde Balem  (terminada)Onde histórias criam vida. Descubra agora