5. Um tratado de magizoologia a menos

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Na manhã seguinte despertei muito cedo de um sono muito leve com os ruídos matutinos da fazenda-zoológico em que me encontrava e, assustada, olhei em torno, saltando para fora de meu abrigo. Ao longe, vi Newt Scamander carregando baldes de um lado para outro, alimentando as mais diferentes feras ao redor, e com curiosidade notei como ele usava comunicar-se com cada uma delas de uma maneira peculiar, que não utilizava comigo, muito certamente pelo fato de que eu, não sendo um ser estável, também não tinha uma única forma de comunicação própria e talvez por isso ele comigo preferisse falar normalmente; e peguei-me dando conta do fato de que agradava-me que ele falasse comigo simplesmente como se eu fosse humana, como se eu fosse igual a ele, embora fosse óbvio o quanto essa ideia de igualdade entre nós era absurda. E em silêncio pus-me a espreitá-lo por entre os vãos da baixa cerquinha dourada que me prendia, e gastei longo tempo nisso, em segui-lo com o olhar, até que recordasse-me da ideia que em muito breve, certamente, começaria a visitação e, um pouco apavorada, corri para esconder-me num abrigo de tamanho médio, ao menos até o meio-dia.

Não demorou muito, porém, para que Scamander chegasse até o meu cercado e com tristeza remexesse no meu comedouro ainda cheio, o que fez por algum tempo, enquanto parecia pensar. Logo ele parou com isso e, pondo as mãos à cintura, colocou-se a olhar para cima, retorcendo de leve os lábios, até que baixasse o rosto e coçasse os olhos. Pigarreou um pouco e coçou o nariz com as costas da mão antes de falar, claramente tentando disfarçar a tristeza que sentia com um falso tom de alegria na voz:

- Já vi animais que só alimentam-se na hora certa, mas um, como você, que precisa de hora certa para saber o que vai comer em seguida, é a primeira vez. Ter que aguardar todos os dias a sua metamorfose é um transtorno, se formos pensar a respeito, porque eu nunca saberei do que vou precisar, se serão nozes, ou capim, ou carne, e muito menos em que quantidade - coçou novamente os olhos - Mas, bem, eu já havia pensado nisso e, na verdade, na medida do possível, estou mantendo um estoque extra com um pouco de tudo, pode ficar tranquila - e assim dizendo, baixou os olhos e retirou-se, não sem antes falar - Meio-dia eu estarei por aqui para providenciar tudo o mais breve para você.

E quando ele afastou-se, retirei-me mais profundamente para dentro do abrigo, para que não pudesse ser vista pelos visitantes assim que chegassem.

Mas eles não chegaram.

As horas foram-se passando e a única pessoa que circulava ao redor era o próprio Newt Scamander, que continuava trabalhando - alimentando, cuidando, limpando, medicando os outros Animais Fantásticos, sem descanso. E quando, finalmente, ao meio-dia ele retornou para perto do meu cercado, estava um pouco sujo, descabelado e suado, e notei quanto trabalho davam-lhe as criaturas, mas ainda assim ele parecia satisfeito. Puxou um banquinho de madeira e nele sentou-se, e notei, espiando para fora, que ele trazia consigo um grande caderno com capa de couro, que abriu por sobre o colo, e folheando páginas, começou a escrever nele, até que dissesse:

- Sabe, coisa linda, eu estou anotando aqui, dia a dia, todas as metamorfoses suas que consegui acompanhar e presenciar nos últimos quatro meses, e confesso que na realidade perdí muitíssimo poucas. Gostaria muito de escrever um tratado realmente detalhado sobre as transformações dos metamorphosusvelticcus, porque não temos nada muito completo sobre vocês em nossas bibliotecas de magizoologia, infelizmente, mas, pensando melhor, não acho seguro para você que eu faça isso - e tornou a fechar o caderno, erguendo o rosto para olhar para o nada por um momento, de forma pensativa - Porque, para tanto, eu acabaria tendo de revelar minhas fontes, e acho melhor não. Não acho seguro que alguém venha a saber que ainda resta um metamorphosusvelticcus vivo... Mesmo entre a comunidade mágica, ainda existe um certo receio e um preconceito contra vocês. Acho que terei que guardar minhas descobertas e estudos, e mesmo você própria, para mim mesmo; claro, até que as coisas mudem - e tirou o relógio do bolso e olhou as horas - Bem, está quase na hora agora - e apoiou os braços sobre a cerca, aguardando que eu saísse de onde estava.

Comigo pensei um instante, um pouco confusa, que eu talvez estivesse errada. Ele pretendia, então, guardar-me para ele próprio? Então isso não era um zoológico? Eu não seria exposta ao público? O que seria ele, então? Um escritor, um cientista? Magizoologia, ele dissera? Eu não era então pretendida como atração pública, mas sim, como coleção, como cobaia científica? Raramente eu conseguiria, nesse exato momento, precisar o que seria pior, exceto pelo fato de que, ao menos, o receio de minha descoberta eu agora parecia já poder descartar; e assim pensava quando percebi uma pequena luminosidade clarear o interior do abrigo onde encontrava-me, e eu então percebesse que estava começando. Logo meu corpo inteiro foi envolvido pelo brilho dourado e comecei a transformar-me, sentindo que o corpo inteiro crescia, as pernas se-me alongavam, a cauda esticava-se, longilínea e comprida, e das costas brotavam-me asas, e percebi que o abrigo que eu escolhera ainda não era grande o suficiente para conter-me então, e saltei para fora apressadamente.

Nesse instante dei de cara com Newt Scamander que, saltando do banco e pondo-se de pé, olhava-me de queixo caído e olhos faiscantes enquanto eu metamorfoseava-me, e aos poucos notei que ele olhava mais e mais para cima. Pelo jeito eu estava ficando enorme. As patas com cascos eram longas e fortes e batendo a cauda no ar, senti que tinha na ponta um grande chumaço de cabelos pardos. As asas abriram-se, enormes e poderosas e, subitamente abrindo o bico em que havia-se transformado o meu anterior focinho, soltei um grito agudo e assustador, como o de uma águia anormalmente grande, que rugiu ao redor, fazendo o chão tremer um momento. Bati as asas com fúria antes de baixar os olhos para o bruxo, que olhava-me pequeno lá de baixo, e que ouvi exclamar, mais para si mesmo:

- Minha nossa, é o hipogrifo mais maravilhoso e maior de todos que eu já vi em toda a minha vida... É massivo! É... É... É simplesmente maravilhoso! - e segurava-se à cerca, como que para não cair para trás - Preciso... Preciso providenciar um monte de comida. Isso é...absolutamente maravilhoso!

Vendo o quanto ele estava impactado com a minha aparência, e sentindo-me subitamente muito atrevida com minha forma e personalidade novas, caminhei com passos firmes em sua direção, levantando uma nuvem de poeira de terra atrás de mim, que espalhava no ar enquanto agitava as asas, e ao aproximar-me, soltei outro poderoso grito, que fez Scamander piscar várias vezes mas, ao invés de sentir-se amedrontado, como eu pretendia, ele simplesmente sorriu e abriu os braços, movimentando-os no ar sem muito sentido a princípio antes de com eles começar a tentar afastar de si a poeira enquanto olhava-me e ainda sorria, antes de ter um acesso de tosse. Aproximei-me mais, estufando o peito e, erguendo-me sobre as patas traseiras, tentei intimidá-lo ainda mais uma vez e, batendo as asas, ergui-me do solo, mas logo senti a magia que realmente havia na cerca e, embora fosse-me ridiculamente pequena, eu não conseguia transpô-la, como se ao redor de mim houvesse uma barreira invisível e, zangada com isso, soltei um tremendo grito, tão ensurdecedor que fez Scamander cobrir as orelhas com as mãos em súbita agonia.

- Calma, calminha, querida. Desse jeito, você vai assustar todas as criaturas num raio de quilômetros... E colocar-me surdo. Acho que não é essa a sua intenção - desci para o chão e empinei-me ainda mais uma vez antes de finalmente recolher as asas para trás, mantendo a cabeça de ave de rapina, gigantesca, muito ereta - Já vi o quanto é poderosa e reconheço isso, agora acalme-se. Como eu te disse, não pode sair. Mas por sorte, há espaço suficiente aí dentro. Vou providenciar comida - e abaixou-se, pegando o caderno do chão, pondo-no sob o braço, antes de erguer-se para olhar-me mais uma vez, falando de modo sonhador - Minha nossa, cavalgar algo assim deve ser a coisa mais fantástica do mundo inteiro! Aguarde-me um instante, que eu já volto!

*

*

Notas Finais

Finalmente a criatura já sabe que Newt é na verdade um cientista e não um mero explorador de animais, mas ainda não compreendeu bem os seus propósitos.

E Newt, por seu lado, a cada novo meio-dia e dez, tem sua admiração por ela aumentada.

Mas ainda há um detalhe que ele desconhece...

O que poderia ser?

Descubra no próximo capítulo dessa história.

Até lá.

:)

Presa na Mala de Newt ScamanderOnde histórias criam vida. Descubra agora