19. O instrumento das forças sublimes

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Cinco meses passaram-se sem que eu novamente assumisse nenhuma outra forma nem mesmo meio humana que fosse, e muito aos poucos o tempo foi diminuindo a dor e o sofrimento que nós dois, mas especialmente Newt, havíamos sentido nos primeiros dias, porque na verdade conseguíamos compreender que um amor como o nosso, tão real e verdadeiro quanto difícil, realizava-se também apenas na companhia e na presença um do outro, que era tudo o que tínhamos na maior parte do tempo, e era dessa forma que Newt ganhara uma companhia praticamente inseparável durante todo o tempo em que estava dentro da mala. Incontáveis foram as minhas formas: De escaravelho a dragão, de gata a mesclagens monstruosas, de pelúcio a serpente emplumada, mas nunca Newt demonstrava predileção por qualquer que fosse delas, tratando-me com o mesmo amor todos os dias. Mas era verdade que no fundo de seus olhos, era visível que para ele sempre faltava alguma coisa, porque ele, como os de sua raça, anseiam pelo amor físico tanto quanto pelo ideal, e não poder tê-lo sempre que desejava fazia-lhe falta; não que eu também não ansiasse estar com ele novamente, mas, sendo animal, as coisas para mim eram um pouco mais simples. Mais do que puramente expressar amor, para mim o contato físico tinha um propósito muito mais simples e direto, propósito esse que eu havia atingido e, portanto, agora a falta desse contato não me afetava. E embora eu estivesse, por um lado, incrivelmente feliz por isso, ver a melancolia de Newt não deixava-me estar feliz por completo, e eu conseguia às vezes como que compreender as nuances da complexidade do que é um ser humano e, por consequência, eu ia aos poucos compreendendo-os muito mais.

*

Cheia de apetite ao final daquelas 24 horas como serpente emplumada, eu aproveitava os últimos minutos para terminar de comer as caças que Newt havia depositado em meu comedouro, enquanto ele observava-me de perto. Uma vantagem que nossas horas íntimas juntos havia-nos proporcionado fôra essa: Não importava mais que tipo de fera ou monstro selvagem eu me tornasse, Newt não fazia questão de precaver-se, porque tinha a plena confiança de que eu seria-lhe completamente mansa, e mesmo estando eu caçadora e carnívora, ele mantinha-me com cercado aberto, e ficava ao meu lado, mantendo mesmo contato físico comigo sem temer absolutamente por um fio que fosse de seu cabelo, e era assim que lá estava ele, fazendo carinho com a mão na cauda de uma serpente emplumada de mais de 5 metros de comprimento, enquanto falava-lhe carinhosamente:

- Memê, você anda muito glutona. Está ficando enorme. Olhe para você.

Engolindo a caça, ergui a cabeça enorme de serpente e fitei-o com os olhos amarelados, comigo pensando como ele era capaz de não perceber a verdade, sendo o cientista que era, e ardentemente desejando poder falar-lhe eu mesma. Mas até quando eu teria que esperar, ou melhor, teria eu a chance de dizer-lhe, como gostaria? De certa forma, minha vida inteira, era como se faltasse alguma coisa para que eu fosse feliz, como se simplesmente não fosse o meu destino sê-lo... Mas ao mesmo tempo, comigo pensei que, talvez, eu apenas fosse como todo o resto da criação e, que a felicidade, na verdade, não era um dom, mas apenas a expressão de momentos felizes, que deviam ser vividos e aproveitados ao máximo e com louvor e respeito, porque esses momentos eram, na verdade, tudo o que tínhamos, e o que poderíamos ter.

E foi assim compreendendo a vida que, olhando Newt alí tão próximo de mim, com seu cabelo sujo e despenteado, as mangas da camisa dobradas de forma desleixada, a mão deslizando distraída e sonhadora por minha pele áspera, que eu vi que, não podendo termos tudo o tempo todo, temos o que é preciso a cada instante, e sentindo-me feliz por aquela sabedoria, ergui a ponta da cauda, envolvendo-no com ela como se o abraçasse, e percebendo isso, Newt riu-se, erguendo o bonito olhar para mim, e com a ponta do chocalho de meu guizo resvalei de leve em sua cabeça, jogando-lhe o cabelo todo de lado. Parecendo fascinado com aquilo e rindo alto, Newt disse-me:

Presa na Mala de Newt ScamanderOnde histórias criam vida. Descubra agora