capítulo DOIS

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A ESTAÇÃO VIBROU quando o trem parou de repente. Havia pessoas por todos lados, algumas entorpecidas de perfume, outras fedendo logo de manhã. Porém, ele estava ali. Não muito longe, mas perto.

As portas se abriram e foi como espremer pasta de dente. Era quase impossível tantos corpos passarem por uma mesma porta e ao mesmo tempo. Meu professor entrou primeiro, tinha fones nas orelhas, mochila nas costas, o Kindle na mão. Parecia que ele também gostava de ler, mas nunca tive coragem para puxar assunto sobre isso, nem sobre qualquer outra coisa, na verdade.

Me aconcheguei há uns três bancos de distância. Podia vê-lo do outro lado, os olhos concentrados na tela. Era quase todo dia assim, e todas as manhãs me via conversando com ele, argumentando aqui dentro da cabeça o que diabos eu perguntaria para ele. Falar sobre a escola? Notas? Provas? Não, de jeito nenhum! Falar dessas coisas me aborrecia, e ele pensaria que estou enchendo saco, e não dando mole....

Bom, enquanto o metrô deslizava pela cidade, pensei no que sabia sobre ele. Seu nome era Eron, Eron Ferreira, um nome comum, nada extravagante. Sabia também que ele não tinha trinta, talvez uns vinte e oito anos, por aí. Nunca o vi com mulher alguma, nem homem, o que não queria dizer nada, já que eu não o via o dia todo. Só por boa parte dele...

Foi aí que ele levantou os olhos e me encarou. Aquela encarada rápida, que não durou mais que um milésimo, pois eu, Ana Lúcia com o coração pulando pela boca, desviou a cara para o canto, e sentiu o rosto queimar, ruborizado.

Ai que vergonha!

Odeio quando isso acontece, quando estamos olhando, as vezes de modo inocente, e a pessoa olha de volta. Eu estava despreparada! Bom, hora de esquecer isso, Ana. Vamos lá... abra seu Kindle, leia alguma coisa, escute uma música. Esqueça esse cara, por favor.

Quando o metrô parou, a pasta humana se espremeu novamente pelas portas. Era uma aventura até mesmo para chegar ao colégio. Levaram-se ainda mais alguns ônibus e várias músicas até que, finalmente, pisasse na escola.

Aleluia.

A entrada fervia de alunos como sempre, um pequeno oceano de pontos brancos carregando mochilas, cochichando aqui, brigando ali e se beijando por aí.

Eu não tinha muitas amigas, é verdade, mas era o último ano, então era normal, cada uma seguiria seu rumo. Coisas da vida...

— Olha só se não é a dona da passarela — foi o que disse Bárbara, minha amiga, no melhor e mais esquisito jeito de cumprimentar alguém.

— Oi, bom dia — respondi no tom casual de sempre, Eron ainda perseguia minha mente...

— Que foi? Dormiu mal? — perguntou ela, amarrando os cabelos louros num coque enquanto subíamos as escadarias.

— Ah, sim — bocejei. — Dormi tarde ontem, fiquei lendo até cair no sono.

Entramos na sala, os alunos sentados sobre as carteiras, os grupos reunidos, conversando, arremessando bolinhas de papel de um lado para o outro. A aula começou alguns minutos depois. Biologia. Sorri quando o professor entrou na sala.

Já havia reparado que não era a única que gostava do professor Eron. Grande parte das garotas cochichavam e lançavam sorrisinhos quando ele aparecia, a turma toda entrava em transe. Ele tinha um jeito especial de ver as coisas, de cativar, de deixar qualquer uma molhada de tesão.

Seu cabelo também estava preso num coque, os fios repuxados para trás, reforçando as linhas do rosto, contornando os traços felinos, os olhos estreitos, verdes e selvagens. Ele se sentou sobre a mesa e começou a jogar um molho de chaves para o alto, apenas para agarrá-lo novamente e depois repetir o movimento. Embaixo do outro braço, no entanto, carregava uma pasta grossa, marrom, recheada de papéis.

— Turma — disse ele, o tom grave, de ordem. — Terminei de corrigir as provas ontem. Alguns foram bem... outros não. Vou entregar assim que todo mundo ficar em silêncio.

Ouvia-se o trânsito lá fora, o vento nas árvores, mas nem um suspiro dentro da sala. O professor se levantou, não disse nada, apenas deixou em cada carteira uma folha de papel. Resmungos e murmúrios começaram a percorrer a sala pouco depois, cada aluno informando a nota um para outro.

Recebi a minha prova. Olhei para o alto, encarei-o por um instante, acho que ele moveu os lábios para mim. Foi um sorriso, não foi? Meus dedos estavam um pouco fracos e meio trêmulos. A nota, em vermelho, indicava um oito, e abaixo, algo escrito em letra cursiva:

Parabéns, Ana, te vejo na sacada.

Aquilo me assustou, com toda a certeza me assustou. Estava apavorada. Quase dei um pulo para trás, o coração parou por um instante. Sacada? Reli a frase várias vezes. Ele escreveu 'sacada'!

— Quanto tirou? — Bárbara espichou o pescoço para ver a minha nota.

— Tirei oito — dobrei o papel ao meio antes que ela visse. — E você?

— Seis e meio, acredita? Acho que vou pegar recuperação... — Bárbara retorceu os lábios, mudou de assunto. — Eaí, vamos sair hoje? O Guilherme tá doidinho pra te pegar — sua voz agora não passava de um sussurro.

O Guilherme? Nossa, mal me lembrava dele... tínhamos saído no último final de semana, mas ele não conseguiu me roubar um beijo. O safado quer tentar de novo... tudo bem. Ele é gato, sabe, uns dois anos mais velho que eu, alto, malhado. Tudo de bom.

Bárbara continuou me encarando, mordia os lábios para segurar o riso.

— Tá bem — aceitei.

Ela comemorou.

— Ele é gato, aproveita!

Senti as bochechas queimando de novo.

— Fala baixo! — murmurei, ela tapou a boca com uma das mãos e riu. — Ninguém precisa saber dessas coisas.

— Desculpa — ela se sentou de novo, a aula estava prestes a retomar.

Eu, entretanto, não tinha lugar para Guilherme na cabeça, apenas para sacada, para o Eron. Senti o coração gelar de novo, um pouco de constrangimento, e também um misto de curiosidade e ansiedade.

Sacada... Repeti comigo, e depois de novo e de novo... Te vejo na sacada.

Será Que é Desejo? (HISTÓRIA COMPLETA)Onde histórias criam vida. Descubra agora