Oportunidades mal distribuídas

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Adélia, uma jovem morena de cabelos longos com traços indígenas, era empregada doméstica do empresário Paulo Salles há cerca de três meses.

Na última sexta-feira de cada mês, o empresário possuía o hábito de ir para seu escritório localizado no Centro da cidade do Rio Janeiro. Paulo era dono da imobiliária VIDAPÊ, uma das empresas em ascensão que mais lucrava no país, com filiais espalhadas em vários pontos do território brasileiro.

- Adélia, estou indo para o escritório. Provavelmente devo demorar bastante hoje. Temos uma longa reunião que pode levar a VIDAPÊ para o resto mundo! Avise a Cristina que optei por não acordá-la porque ela parecia estar bem cansada. - afirmou o empresário com um sorriso radiante de quem almejava conquistar o mundo.

- Ok, Paulo! Aviso a dona Cristina sim. - respondeu a jovem doméstica com uma voz suave.

Cristina Ferreira Salles, cônjuge de Paulo, era uma das mais renomadas professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aos 34 anos, já havia conhecido grande parte do mundo por meio de suas pesquisas bem sucedidas na área da Tecnologia da Computação, com projetos ativos que se estendiam até o Vale do Silício.

Às 09h42min. Paulo chegava na principal avenida do Rio de Janeiro e avistava um engarrafamento quilométrico. Sua reunião inadiável aconteceria às 10h00min. no Gold Pallace Business, localizado três quarteirões a frente. Passaram-se alguns minutos e o Hyundai Ix35 de cor preta permanecia no mesmo lugar. O empresário, com seus 43 anos e cabelos grisalhos, começava a ficar inquieto, pois os magnatas europeus eram conhecidos por não tolerarem quaisquer tipo de atrasos. Para eles, a ausência de pontualidade era um forte sinal de descaso que compromete o negócio.

Às 09h53min. o trânsito começou a avançar. O empresário, já nervoso com a falta de tempo, cogitava a ideia de desrespeitar os semáforos para evitar o possível atraso. Na verdade, até tentou, mas por pouco não se envolveu em um grave acidente em um cruzamento.

- Tá maluco, coroa? O sinal tá fechado pra você ai, ó! - gritou o motorista de um Monza 1988 com a lataria enferrujada que quase colidiu com o carro do empresário.

Ao mesmo tempo que respirava fundo e dava ré para retornar à posição correta antes da sinalização, aproximou um garoto bem magro na janela do carro de Paulo.

- Moço, o sinhô quer uma paçoquinha? É pra ajudar minha família. Até agora não vendi nada. - afirmou o garoto, que aparentava ter uns 10 anos, com a voz meio rouca de quem parecia estar gripado.

- Não, garoto! Hoje não! Estou com pressa. Vai amolar outro! - afirmou Paulo de forma rude, já transtornado pelo medo de perder uma grande oportunidade de melhorar ainda mais as condições financeiras.

- Desculpa, sinhô! Fica com Deus! - afirmou o garoto no mesmo momento em que o carro de Paulo arrancava.

Às 09h58min., Paulo chegou ao local da reunião e lá estavam os empresários, quase prontos para juntarem suas malas e desistirem do negócio. A reunião durou cerca de 6 horas e foi um sucesso. A VIDAPÊ agora também atuaria fora do Brasil, de início, com filiais em Berlim e Lisboa.

O empresário tinha o hábito de todos os dias, antes de dormir, ficar sentado no sofá da sala refletindo sobre o que fez no dia. E, apesar das comemorações, lembrou da forma que tratara a jovem criança naquela manhã.

- Amanhã quero encontrar essa criança! - pensou em voz alta.

No dia seguinte, mesmo que não costumasse levantar aos sábados pela manhã, o empresário decidiu ir se desculpar com o garoto.

- Amor, onde vai a essa hora? - indagou Cristina.

- Vou ali consertar um erro que cometi ontem, amor! Não demoro! - respondeu Paulo.

Chegando ao local, lá estava a criança com sua caixa de paçocas na mão.

- Ei, garoto! Qual seu nome? - perguntou o empresário.

- Me chamo Otávio! - respondeu o menino com a feição de medo de quem lembrava dos maus tratos do dia anterior.

- Quer tomar um sorvete? Sei que sua mãe deve falar pra você não sair com estranhos, mas pode confiar em mim. A gente compra o sorvete e volta pra tomar ele aqui na rua onde você fica, pode ser? - sugeriu Paulo.

- Beleza! - afirmou o garoto com um sorriso no rosto.

Assim aconteceu. O presidente da VIDAPÊ comprou dois sorvetes de R$ 2,50 e sentou no meio fio com o garoto e ficaram conversando, como se fossem amigos há tempos.

- Há quanto tempo você trabalha nas ruas? - perguntou Paulo.

- Faz uns dois anos. - retrucou o moleque. - Depois que meu pai faleceu, eu tomei essa iniciativa porque eu via o quanto minha mãe ficava apertada em pagar as coisas lá de casa tudo sozinha. Aí eu tenho que ajudar, né? Mas eu sou doido pra estudar. Vejo aqueles meninos com mochilas nas costas sorrindo. Deve ser bom...

Em todos esses anos de vida, Paulo nunca ouvira um argumento tão triste e ao mesmo tempo tão responsável vindo de um garoto tão jovem.

- E sua mãe faz o que da vida? - indagou novamente Paulo.

- Tem uns meses já que ela começou a trabalhar na casa de um velho rico. Mas ele é um muquirana! Paga uma mixaria pra ela e ai não dá pra sustentar a casa direito.

- Sério? E onde fica a casa desse "muquirana"? - perguntou Paulo ao garoto após dar algumas gargalhadas pela resposta da pergunta anterior.

- Fica ali no Leblon. Um casarão branco bonitão com uns anões de jardim de enfeite na grama. O número da casa é 2006 - respondeu o garoto. - Eu lembro porque foi o ano em que nasci.
No momento em que ouviu a resposta do garoto o semblante do empresário mudou totalmente. Engolindo fundo a saliva, ele descobriu que o "muquirana" citado pelo garoto poderia ser visto todos os dias no espelho.

Após alguns minutos de conversa, despediu do garoto e correu pra casa.

- Adélia, venha cá! Você me disse uma vez que tinha filhos. Eles estudam? - perguntou o empresário.

- Na verdade tenho só um garoto, Dr. Paulo. Infelizmente não consegui matricular ele na escola pública. Temos que esperar abrir vagas e tentar para o meio do ano. - respondeu Adélia, com um tom de voz baixo e entristecido.

- Então, é o seguinte: coloca ele na Dom Castro! - respondeu Paulo com a voz entusiasmada.

- Na Dom Castro? Que isso, Senhor? É a escola particular mais cara do Rio. Eu não tenho dinheiro pra isso não. - retrucou a doméstica sem entender a proposta do chefe.

- Eu pago as mensalidades até que ele se forme. Ele não pode ficar sem estudar. - respondeu Paulo. É um benefício que criei agora para você pelos excelentes serviços prestados nesses meses.

Nesse momento, Adélia abraça o empresário em prantos, atitude essa que comprovou a decadente situação financeira da moça.
Paulo, durante anos, no mesmo horário e local em que via o garoto vendendo as paçocas, agora o via com a mochila nas costas e com um sorriso estampado no rosto.

- E aí, garoto! Como está na escola? - perguntou o empresário em um determinado dia.

- Tá tudo ótimo Sr. Muquirana. - respondeu o garoto em gargalhadas e dando um forte abraço no empresário pela janela do carro.

Otávio Antônio levou os estudos a sério e depois de longos anos de amizade fiel ao doutor Paulo Salles, acabou se tornando um dos sócios majoritários da VIDAPÊ, que ainda permanecia no auge.

Certo dia, indo em direção ao escritório onde trabalhava, Otávio parou em um semáforo e um garoto veio lhe oferecer balas de goma para comprar.

- Moço, quer comprar uma bala de goma pra me ajudar? - perguntou o moleque.

- Eu tenho uma proposta melhor pra te fazer garoto. - respondeu Otávio com um sorriso no rosto. - Que tal tomarmos um sorvete? Eu pago pra você e a gente fica ali no meio fio sentados e conversando...

FIM

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