Contas a Acertar

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Alice entrou em seu quarto e seus olhos cansados analisaram cada tecido vermelho ali. Ela andou até o espelho e viu seu rosto pálido refletido sem qualquer expressão.

- Aragon. - Ela falou baixando e seu olhar foi para a penteadeira abaixo, onde lá estava a velha lagarta lhe lançando um olhar demorado.

- A realeza lhe cai bem. - Ele soprou sua fumaça e Alice sequer reclamou. - Está gostando do poder que lhe foi dado, Alice?

Alice voltou a se olhar no espelho e levantou seu queixo, vendo os olhos se tornarem vermelhos onde eram azuis.

- É a coisa mais poderosa e desprezível que eu já vi na vida.

Ela se analisou tão bela e infeliz. Chegou a pensar que via um rosto muito feio lhe olhando de volta, mas ela sabia que aquilo era o seu interior. Uma lágrima desceu por seu rosto e ela franziu o cenho.

- Sabe o que me intriga, Aragon? Eu não tenho sentimentos dentro de mim. Sou vazia. - Ela tocou a lágrima ainda vendo seu reflexo ali. - No entanto, eu choro como se eu fosse um corpo vazio que de hora em hora se enche e transborda.

Aragon assentiu refletindo às suas palavras e esperando que ela lhe dissesse mais. Alice disse.

- Não há expectativas para nada. Estou fluindo sob à constante neblina da indiferença. Sinto que a palavra Amor me dói quando sai dos meus lábios. Chego a sentir o gosto do sangue na boca. Em algum momento eu amei, Aragon? Fui capaz de tal ato?

- Você não se lembra? - Ele perguntou com sua voz grave e branda. Ela negou com a cabeça.

- Não com clareza. - Ela se virou para vê-lo. - Lembro de acordar há pouco e pensar no que eu sou e o que devo ser. São coisas diferentes, acredite. Sinto que nasci para amar... - Ela engoliu em seco não gostando da palavra. -... No entanto, em mim não há amor.

- Está me dizendo que esqueceu do Chapeleiro ao acordar?

Ela pegou a lagarta e pôs na sua mão, aproximando de seus olhos.

- Eu o amei? E ele? Ele me amou?

- Com todas as suas forças. - Ele respondeu. Mas Alice refletiu ódio no olhar.

- Então por que ele foi embora?

- Você se casou com outro, Alice. Você se casou com Guilhermo, o sobrinho do Chapeleiro.

Alice fechou os olhos sentindo a raiva surgir aos poucos.

- O odeio. - Ela falou trincando os dentes. - O odeio de uma forma absurda. Tenho vontade de arrancar seus olhos estrelados.

- Por que você odeia seu marido?

Aragon não se abalou quando Alice fechou sua mão em volta de seu corpo com um aperto leve.

- Minha paixão não é real. - ela conseguiu dizer trêmula e apertando mais a pobre lagarta, que se alarmou assustada. - Havia um amargo em meu estômago, entende? Beatriz deu sua última cartada antes de morrer.

- O que está dizendo?! - Ele perguntou perdendo o ar.

- Era uma poção da pedra que caiu do céu. - Ela arqueou as sobrancelhas perplexa. - Eu a bebi. Mas quando? Quando meus olhos se desviaram para Guilhermo? Por que isso aconteceu?
Beatriz não foi feliz e se encarregou de fazer de mim sua substituta! Não consigo amar! Só tenho sede de sangue! Mas no fundo ainda espero por ele! Eu não me entendo! Não sei o que se passa dentro de mim!

Ela lançou a lagarta com todas as suas forças na cama. Aragon rolou e se recompôs zonzo.
Alice estava enlouquecida.

- Ainda espero por seu perdão! Mas ele voltará?! Será capaz de me fazer amar novamente? O Chapeleiro me beijará com sua inocência e tirará de minha boca o gosto do sangue? Onde ele está? Onde está o meu verdadeiro Rei?! - Seus olhos se arregalaram de forma anormal e ela sorriu largo. - Tenho contas à acertar! TENHO CONTAS À ACERTAR!

Alice saiu do quarto como uma tempestade com raios e Aragon se alarmou.

- Teremos mais tragédias pela frente. E Gottan não ficará nada contente.

Alice chegou na frente do seu castelo e se deparou com um impasse em sua saída. Centenas de seus súditos estavam ali e alguns se apoiavam uns nos outros visivelmente doentes.

- O que fazem aqui?! - A voz dela ecoou e seu olhar foi para o homem tigre.

- Alteza, cumpri sua ordem. Todos estão aqui.

Alice franziu o cenho e baixou sua vista. Por fim ela se lembrou e se dirigiu ao homem tigre.

- Não tenho tempo para isto agora. Mas espero que todos estejam felizes por constatar que as cinzas se foram do País das Maravilhas. Minha única recomendação, e isto não é uma ordem, é que sejam sempre justos e de coração puro. - Ela passou sua vista ao redor. - Caso contrário, eu beberei o sangue que corre por suas veias.

E se foi criando asas nas costas num vôo rápido.
O pobre homem tigre negou com a cabeça e fugiu dos olhares chateados que as criaturas lançavam á ele.

Bianca estava no salão principal do castelo relatando tudo a Gottan, quando um forte estrondo se abateu. Ela se agarrou à ele que olhava para todos os lados intrigado.
O teto se partiu trazendo grandes pedras de gelo e eles se afastaram com Bianca aos gritos.
Quando tudo silênciou, Gottan e Bianca avistaram Alice à sua frente.
Uma aura vermelha pairava por todo seu corpo e seus olhos continham um brilho da mesma cor.

- Gottan. - A voz dela saiu arrastada de ódio.

Gottan engoliu em seco e se livrou de Bianca, chegando mais perto de Alice.

- Você não pode entrar no meu castelo.

- Cale essa boca. - Ela apontou seu dedo para ele, e de lá uma fina linha de fumaça vermelha saiu, indo direto à boca de Gottan. Ele tentava falar mas não conseguia.

- Suma daqui! - Bianca exclamou em desespero. - Você é a única responsável por ser infeliz! Não venha nos culpar pelos seus erros!

- Você não deveria ser boa? - Alice perguntou à ela, que estremeceu. - Todos me enganaram. Sempre me diziam que o Chapeleiro e eu não deveríamos ficar juntos. Todos me diziam isso mas eu jamais imaginei que você, a Rainha Branca, pudesse participar de um plano tão sujo.

Bianca empinou o nariz e limpou as lágrimas de medo.

- Eu sou mãe, Alice. E uma mãe faz tudo pela felicidade do filho. Quantas vezes terei que lhe dizer isso?

Alice e o Chapeleiro (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora