IV

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O meu ato heroico da noite anterior se espalhou de forma surpreendentemente rápida pelo navio, fazendo parecer mais do que realmente havia sido. A história fora contada e alterada tantas vezes que a certa altura se tornou algo absurdo terminando comigo colidindo espadas sozinha contra os três piratas inimigos e anulando completamente a participação de Scorpius, mal sido mencionado a sua inteligente estratégia com a pólvora — o que não deixou o nosso capitão muito contente.

Eu não havia alimentado nada daquilo, mas não havia forma de controlar. Era como incêndio em uma plantação seca que se alastrava desordenadamente e sem controle. Contudo, depois disso, surgiu entre os marujos um respeito direcionado a mim que eu não estava esperando receber. De repente, todos ficaram bem mais cordiais. Todos exceto uma pessoa.

Era bastante visível que Scorpius estava incomodado com a minha recente popularidade. Não me dirigiu nenhuma palavra desde o ríspido "obrigado" na noite anterior e ficou claro que ele estava me evitando durante o dia inteiro. Imaginei que a única explicação se devia ao fato de eu ter danificado o mastro do navio. Ele não parava de repetir e resmungar o quanto aquilo iria nos atrasar e que teríamos que parar em algum porto para fazer os consertos necessários.

De todo jeito, não importava quão feia fosse a expressão no rosto dele ou o quão alto fosse suas reclamações, eu não iria pedir desculpas por tê-lo salvado.

Naquele final de tarde, sentei-me em um caixote de madeira no convés junto com Grilo que estava decidido a me ensinar jogar carteado. Enquanto ele embaralhava as cartas depois de ter me vencido pela segunda vez, notei Scorpius lá em cima no tombadilho, com o corpo inclinado e os cotovelos apoiados na amurada, olhando o oceano. Ainda continuava carrancudo e mal humorado. Notei que havia algo em sua mão, tão pequeno que só percebi o que era quando o sol refletiu em um dos lados da moeda dourada, que movia com habilidade entre os dedos. Exceto por isso, permanecia tão imóvel quanto uma estátua de pedra.

— Ele ainda está com raiva de mim por ter destruído o mastro? — perguntei, ainda observando-o.

— Raiva? — Grilo repetiu, parando de distribuir as cartas para seguir o meu olhar. — Ah! Não, não é raiva. E com certeza não é por causa do mastro.

— Então qual é o problema?

— O Capitão só não está acostumado a dever a vida a uma garota.

Desviei os olhos de volta para o marujo na minha frente, incomodada com a declaração. Aquilo nem mesmo havia passado pela minha cabeça.

— Ele não me deve nada.

— Você salvou a vida dele, não salvou?

— Qualquer um poderia tê-lo feito. — teimei.

— Mas foi você. — o rapaz deu ênfase, erguendo uma sobrancelha. — De todos no navio, foi você quem estava lá. Então ele te deve.

Voltei a olhar para Scorpius que não havia mexido um músculo até o momento. Sua expressão era uma sombra escura como uma nuvem de tempestade. Soltei um suspiro antes de completar:

— E ele não gosta nem um pouco disso.

— Piratas não gostam de dívidas. — meu novo amigo declarou definitivo, e apontou para a pilha de cartas no meio do caixote. — É sua vez.

A rotina do navio havia voltado ao normal com incrível rapidez como se o evento da noite não tivesse produzido tanto impacto, exceto por alguns danos causados pelas balas de canhão e o mastro que eu arruinei, embora a maioria dos estragos fosse superficial ou contornável. Syrion havia dito que era apenas alguns arranhões, nada para se preocupar tanto.

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