Não sei se fico aliviado ou apavorado com o que encontro do outro lado da porta, provavelmente os dois. O apartamento parece totalmente vazio, não que esperasse uma recepção de boas-vindas com alguém dizendo "você caiu na pegadinha do malandro", ou um maníaco vestindo uma máscara de couro e usando uma serra elétrica. Essas coisas não acontecem no mundo real, não é?
Por um lado, fico aliviado por não encontrar qualquer pessoa ali, muito menos uma vestindo uma máscara de hockey; por outro lado, olhando bem o resto do apartamento, sim, definitivamente, é um apartamento e não um quarto de hotel, tenho a impressão de que pessoa alguma passou por aqui nos últimos cem anos.
O lugar todo está abandonado, a imensa sala à minha frente está muito mais empoeirada que o quarto. As poltronas marrons que ficam em volta de uma grande mesa redonda estão coberta com algo verde que me fez pensar em pedras de uma cachoeira que acabam cheias de lodo. O problema é que aquilo não era lodo, não me atrevo sequer a imaginar o que poderia ser. Então, evito olhar. Decisão muito madura.
No chão, um tapete vermelho,que em seu auge já devia ser muito feio e incomodar qualquer convidado que ali entrasse, cobre sessenta por cento do ambiente, isto é, supondo que ele continuasse por debaixo das dezenas de almofadas que um dia talvez tivessem sido brancas e se amontoavam do lado oposto ao da mesa.
As paredes estavam cobertas por quadros de pinturas a óleo de todos os tamanhos e formatos. O maior de todos tem a altura de um homem mediano e fica atrás de um sofá chesterfield, mostrando o que parecia ser um longo túnel de pedra sem uma luz no final. Seria a coisa mais estranha de todo o cômodo, se não fosse a gigantesca luminária de bronze que pende no centro um pouco à frente do sofá. Tudo bem que a sala era bem maior que a de um apartamento convencional e talvez exigisse uma iluminação diferenciada, mas aquele colosso de bronze fugia de qualquer medida razoável. O lustre lembra um imponente polvo gigante que parece orgulhoso em exibir seus tentáculos. Talvez uma pessoa alta não conseguisse passar por baixo se o assoalho não fosse rebaixado.
Há três degraus entre o quarto e a sala, o que faria sentido se desse para uma suíte máster, o que estava bem longe de ser o caso. Descendo para a sala, noto um corredor à esquerda que dá para uma porta. Ali só poderia ser o banheiro e, tratando-se do estado desse apartamento, era o último lugar que eu gostaria de entrar.
Analiso toda a sala na esperança de encontrar minha carteira ou o celular em algum lugar acessível aos olhos. Não acho nada. O único lugar que poderia esconder alguma coisa da visão era o mar de almofadas, e eu iria embora sem um braço se tivesse que procurar por ele ali.
A iluminação do ambiente fica por conta de duas janelas quadradas que ficam em lados opostos da sala a uma altura de, no mínimo, um metro e oitenta do chão e despejam uma luz opaca e sem vida que contribuem para tornar o lugar ainda mais melancólico.
Procurando não perder mais tempo naquele lugar, coloco-me em direção à uma passagem que se esconde à direita, atrás da mesa e das poltronas. Provavelmente, ela levaria até a cozinha e, com um pouco de sorte, minhas coisas estariam lá. E, se não estiverem também, que se dane! Vou embora sem elas.
Não consigo tirar os olhos dos quadros, são tantos que não consigo focar apenas em um. Há lagos, bosques, praias, montanhas, desertos, pântanos, todos diferentes e ao mesmo tempo iguais. Todas as paisagens são naturais, noturnas e sem nenhuma figura humana nelas.
Próximo das poltronas, a visão periférica aponta um movimento na estranha substância verde que cobre a mobília. Salto de um jeito escandaloso na direção oposta, aproximando-me mais do que gostaria, ou deveria, do imundo mar de almofadas que cobre boa parte do canto esquerdo da sala. Fico imóvel, como se ameaçado por todos os lados, aquilo era um corredor polonês. Meu estômago doe, e o coração parece querer fugir pela janela.
- Devo estar ficando louco - digo, rompendo o silêncio pavoroso. - Não tem nada aqui.
As palavras saem sem muita confiança. Olho novamente para as poltronas, e a substância verde está lá, estranha, velha, seca e imóvel. Claro que está imóvel, ela não poderia se mover. Ou poderia? Meu coração desacelera, mas ainda me sinto oprimido, como se estivesse rodeado por eletricidade.
Estou perto demais das almofadas e, pelo estado delas, não quero nem imaginar o que pode ter embaixo. Com cuidado, afasto-me caminhando como se pisasse em ovos na direção oposta.
Que droga eu estou fazendo? Instintivamente, estou me esforçando para não fazer barulho ou movimentos bruscos, como se houvesse ali uma fera adormecida que não deveria ser incomodada, mas não têm nada aqui, no máximo insetos, talvez até algum peçonhento, mas só isso. A consciência de estar agindo de maneira absurda não impede o corpo de continuar agindo de maneira absurda. Então, continuo me movendo lenta e silenciosamente para longe daquele lugar.
Prossigo devagar em direção à passagem no canto da sala com os olhos atentos a qualquer movimento no ambiente. Estou próximo à parede, aos quadros e à janela que fica mais à direita. A paisagem seria a mesma que contemplei da janela do quarto, se a neblina não estivesse mais espessa. O denso nevoeiro deixa transparecer apenas o semblante de outro edifício.
Além da tontura e de todo o mal-estar, uma leve dormência cobre todo o corpo e passa a impressão de que os movimentos estão ainda mais lentos, como se fossem ecos. Esses ecos bagunçam tudo, tenho certeza que estou deixando passar alguma coisa, algum detalhe importante. Mas importante pra quê?
Este apartamento exala uma energia ruim e não era só por causa da sujeira ou do estado nefasto dos móveis, claro que isso torna o local inabitável para qualquer forma de vida superior a uma barata, mas vai muito além disso. Sinto algo triste e maligno ali, algo que faz meu corpo se mexer com cautela, algo que mantém meu estômago gelado, algo invisível que provoca um medo totalmente irracional como se alguma coisa muito ruim fosse acontecer, ou pior, já tivesse acontecido.
Entro na passagem e, imediatamente, sinto a tensão em meus músculos ceder, meu corpo parece acreditar que ali o perigo é menor e me devolve um pouco do controle. A passagem tem quase dois metros de extensão e é rodeada por um papel de parede psicodélico que até seria bonito se não contribuísse para deixar tudo ainda mais bizarro. Parece algo que só Philip K. Dick colocaria na parede de casa.
Dentre todos os cômodos horríveis deste maldito apartamento, a cozinha é o mais decadente e grotesco de todos, aquilo estava desolado e com um ar pútrido. Os armários que circulam o espaço são de uma madeira velha, seca e algumas portas se seguram pêndulas em apenas um parafuso. Ao centro, em uma grande pia feita de um material misterioso, encontram-se todas as panelas, copos, talheres, pratos e qualquer outro utensílio que deveria estar nos armários. A montanha de louça imunda se amontoa formando uma escultura fálica que desafia a lei da gravidade e transcende o buraco da pia em mais de três palmos. Apesar do asco que a visão causa, não deixo de ficar impressionado com a simetria que mantém o monumento de louça equilibrado.
Desviando com dificuldade os olhos da pia, começo a inspecionar melhor o ambiente enquanto caminho. Após alguns passos, sou tomado por um misto de alívio e desconfiança quando vejo em cima do que supostamente seria um fogão o meu celular. Contrariando os lentos reflexos que insistia em exibir até então, dou um bote ágil e apanho o aparelho, voltando rapidamente para a posição de origem como se estivesse com medo de perder a mão caso a deixasse mais que um milésimo de segundo naquele lugar. Não sei direito porque fiz isso, aquilo parecia uma armadilha, o lugar todo parece uma maldita caixa de pássaros.
Porque estou com tanto medo desse lugar? Passo os olhos novamente pela asquerosa cozinha e pelo piso de madeira que se estende pela passagem que leva à sala. Tem alguma coisa aqui. Os pelos ficam arrepiados em um claro sinal de alerta e, pela primeira vez desde que apareci nesse lugar, não tento racionalizar. Dessa vez, sinto o que todo o meu corpo, talvez movido puramente por um instinto de sobrevivência, já havia percebido. Eu realmente estou em perigo. Que tipo de perigo? Não vou ficar para descobrir.
Tomado por uma sensação de urgência, coloco o celular no bolso e parto em direção à saída apenas para estacar em um pequeno corredor poucos metros de onde estava. A situação é indescritível, e eu não conseguiria sair tão fácil.
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Noah
Mystery / ThrillerAcredite isso está acontecendo. Acordo confuso e desorientado em um quarto estranho e até hostil. Esta não é a minha casa, na verdade, nem parece uma casa, o lugar está imundo, a mobília podre, e tudo cheira como água de poço. Não me lembro de como...