Real, irreal e suprarreal

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Sei que é um sonho e sei que não é, sinto que ele será promovido à memória real e vou acreditar com todas as forças que fiquei preso na garagem e tive de arrombar a porta para poder sair, e, por isso, fui parar no hospital. Nada de apartamento, nada de criaturas, nada de fantasmas, nada de voltar dos mortos e principalmente nada de suicídio.

Não existe uma âncora para manter a verdade. Logo, Irene e eu seremos apenas colegas distantes que nunca mais tocarão nesse assunto. Sei que posso viver com isso, sei que posso viver com muita coisa.

No hospital, meu caso se transformará em uma lenda urbana. Só o tempo dirá se será uma bela fábula de superação ou uma assustadora história de terror, talvez os dois. É bem provável que a história se ramifique tanto que a versão dos paramédicos nada tenha em comum com a dos médicos. Quem sabe em uma delas eu não me transforme em um zumbi? Isso não seria nada mal.

Isso me faz pensar. Quantas coisas inacreditáveis já aconteceram antes e foram suprimidas ou modificadas por algum mecanismo de defesa psíquico? Quanto do mundo é real e quanto é forjado pelo ego? Quanto a realidade tem sido adaptada para vivermos sem um mínimo de loucura? Posso mesmo confiar nas minhas memórias?

Eu não tenho as respostas hoje, e está tudo bem. Amanhã, sei que não vou mais me lembrar nem dessas perguntas. Por isso, passo os últimos dias escrevendo minhas experiências nesse livro, sei que não o poderei fazer depois e, definitivamente, não poderia telo feito antes, ele existe apenas no agora por culminância de uma combinação de fatores. Amanhã cumpro a promessa que fiz a Irene e procuro um terapeuta, em seguida volto a atender meus pacientes, e o mundo recomeça a girar de modo racional. Hoje, contudo, me permiti a loucura de escrever essas palavras. Mesmo que nunca sejam lidas, eu sei que um dia elas foram escritas.

Ainda pensando em qual terapeuta procurar, entro no carro buscando meu celular e o encontro jogado no assoalho, nunca fui uma pessoa cuidadosa. Resolvo olhar as mensagens. Não há nada de novo, nenhuma mensagem privada ou algo assim, contudo, o grupo do aniversário do Marcelo está abarrotado de notificações. A festa é hoje e em um bar do outro lado da cidade. Pelo visto, já começou.

Eu realmente não sei quem é esse Marcelo, mas isso não importa. É uma festa, e eu fui convidado. Seria extremamente deselegante não aparecer, não é? Afinal, eu não tenho nada a perder e tudo a ganhar. Não fui eu mesmo quem disse para uma bela jovem de olhos puxados na universidade que iria à festa, que adorava festas, que nunca perdera uma festa na vida?

Engraçado. Estou me lembrando da faculdade de novo e, dessa vez, sem sofrimento, isso quer dizer que algo mudou, e eu sinto que mudou para sempre. Não importa o quanto meus mecanismos de defesa reestruturem a realidade, as minhas memórias, os meus desejos e todo o resto, isso não vai mudar o fato de que eu me lembrei de que sou um lutador, de que preciso ser um lutador porque a vida não vai ficar mais fácil, pelo contrário, ela pode e deve ficar muito mais difícil. Contudo, não estou com medo, sei, em algum lugar lá no fundo, que não estou sozinho, que nunca estive e que não preciso estar.

Agora, estou com vontade de ir à uma festa, uma festa para a qual provavelmente nem fui convidado, alguém deve ter adicionado o meu número por engano no grupo. E quer saber? Isso não importa. Sei que ir à essa festa é um passo importante na luta que preciso travar para me encaixar nesse mundo, talvez, o primeiro passo. E eu vou dar esse passo, ah, se vou!

Ligo o carro, engatoa ré e saio da garagem. No rádio, toca uma música eletrônica antiga e nostálgica.Acho que a noite vai ser bem agradável, estou com um ótimo pressentimento.

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⏰ Última atualização: Feb 06, 2018 ⏰

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