Alguns anos antes. Parte 2

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O primeiro semestre foi por um fio. Passei por vários grupos e fui expulso de todos ao fim de cada apresentação. Não é que eu não me preparasse, estudava sim, e muito, virava a noite ensaiando as falas antes de cada apresentação, atitude que originou meu insaciável e bem-vindo vicio em café. O fato é que não importava o quanto eu me esforçasse, eu sempre travava na hora da apresentação como Fat Charlie Nancy travava antes de cantar uma canção. Travar é uma maneira bonita de descrever minha desgraça, digamos que ser atingido por um raio durante a apresentação não seria tão ruim. Gagueira, brancos, hiperidrose e amnésia seletiva são palavras que se encaixam melhor no inferno que passava.

Sabia que a maioria dos professores tinha me dado uma colher de chá no primeiro semestre e fui formalmente comunicado que teria de melhorar muito para não ser reprovado no segundo. Essa, contudo, era uma preocupação secundária. Primeiro, teria que conseguir um grupo, o que ficava mais difícil à medida que ia ficando muito famoso por meus fracassos consecutivos.

Foi logo na primeira semana de volta às aulas, que aquela jovem linda de olhos espertos e cabelo pintado veio falar comigo. Disse que um integrante do grupo dela havia desistido do curso por motivos pessoais e perguntou se eu gostaria de entrar em seu lugar. Não sei se respondi ou fiquei ali catatônico por algum tempo, devo ter ficado catatônico porque ela continuou falando. Disse que era um compromisso para todo o semestre e que o grupo era o mesmo independente das disciplinas e eu teria que me esforçar muito. Estava a salvo, limpei a garganta e tentei falar que estava muito feliz com o convite e que gostaria muito de participar do grupo, que faria o melhor e não desapontaria ninguém. As palavras se esconderam, e tudo que consegui fazer foi abanar a cabeça para cima e para baixo.

Irene tomou a decisão de me incluir em seu círculo pessoal de maneira arbitrária, e isso ficou evidente logo na primeira reunião do meu novo grupo. Olhares raivosos vinham de todos os lados, mas nenhum dos olhos mencionou algo sobre a minha súbita entrada no clubinho deles, aparentemente respeitavam sua líder acima de qualquer coisa.

A jovem alfa comandava tudo, tudo mesmo, determinava os dias e os horários que eles iriam se reunir, os temas que seriam debatidos, quem faria o que no desenvolvimento do trabalho escrito e durante a apresentação. Meu Deus, ela escolhia até quem ligaria para pedir a pizza! Aquilo não era uma leoa, era o próprio Mufasa reencarnado.

Nunca conversávamos fora do grupo, não éramos amigos no sentido íntimo da palavra, não que isso importasse, aquela garota conseguia ver através de todas as minhas barreiras como se elas fossem de vidro. Sempre me deixava com a menor fala, mesmo sem eu pedir, e ainda tomava cuidado para me colocar de terceiro ou quarto na ordem de apresentação, posições que julgava mais seguras e me garantia, mesmo sem eu questionar, que eu poderia ficar tranquilo porque ninguém iria mais estar prestando atenção quando eu abrisse a boca.

Os meses que se seguiram foram reveladores. Sem o espectro do medo e da ansiedade me assolando, pude, pela primeira vez desde que me mudei, apreciar a minha nova vida. Claro que ainda ficava nervoso durante as apresentações, mas era diferente, eu me sentia seguro, Irene me proporcionava isso. E nem era pelas palavras que ela insistia em repetir, ela não precisava dizer antes de cada apresentação que não me expulsaria do grupo mesmo se eu não conseguisse falar uma só palavra, eu sabia, aqueles belos olhos puxados eram sinceros e acolhedores, ela iria me proteger, eu estava seguro.

Com a ansiedade sob controle, percebi que gostava mesmo de psicologia, principalmente da psicanálise. Freud iria adorar os meus pais, vou fazer questão de visitá-lo assim que me afogar nessa piscina, ele não perde por esperar...

Estava finalmente me tornando o estudante que deveria ser, entrei em alguns projetos e grupos de estudo que, por pura coincidência, eram os mesmo de que Irene fazia parte, e, antes de perceber, estava tão abarrotado com a vida universitária que mal sobrava tempo para lamentar a minha existência. Em um determinado momento, estava tão ocupado que não conseguia sequer me lembrar de jogar videogame. Ainda assistia a muitos filmes, é claro, a questão era que, pouco a pouco, os monstros e alienígenas iam sendo substituídos por homens e mulheres melancólicos em dramas cada vez mais existenciais. Sentia falta das aventuras no espaço, um dia talvez conseguisse argumentar com meus colegas, principalmente com Irene, sobre o valor de uma boa ficção cientifica, que, no fundo, Solaris era até melhor para refletir sobre a condição humana que um homem paralisado piscando palavras para um livro, não sei, a exploração da deficiência sempre me pareceu um tanto demagogo. Se bem que "Rain man" foi bem legal, sei lá.

De qualquer forma, a vida estava melhor do que nunca, talvez, se tivesse continuado sem complicações, eu não estaria agora no fundo dessa piscina. Não sei, não dá para ter certeza.

Era final de semestre, e a maioria dos alunos resolveu antecipar as férias e voltar para suas famílias. Eu, como preferia ser enterrado vivo em um cemitério de animais a fazer isso, ainda estava por ali, Irene também porque, claro, nunca perdia uma aula, outros gatos pingados se espalhavam pela sala meio vazia e, como não podia faltar, o professor.

Não lembro bem quem puxou o assunto do livro, talvez o Michael, não importa, alguém cometeu o erro de dizer que somente pessoas acéfalas e fúteis comprariam um livro pela capa, que seu verdadeiro valor estava no interior. Irene, é claro, discordou e chamou de acéfalas pessoas com pensamento tão limitado. O professor ficou deveras chocado e pediu para sua brilhante aluna se explicar.

A explicação que veio a seguir mudou alguma coisa na minha maneira de ver o mundo, e, a partir dali, percebi duas coisas: a primeira era que eu teria que desenvolver outras habilidades para ter uma vida diferente, e a segunda, eu estava completamente apaixonado.

Irene tirou dois livros de sua bolsa, um exemplar em brochuras com folhas brancas e um volume em capa dura com folhas amarelas e borda rosa e perguntou para o professor qual ele escolheria em uma livraria. Ele, obviamente, disse que o melhor ou o mais interessante. Ela refutou de imediato, dizendo que, supondo que os dois fossem ótimos e o interessam igualmente, talvez até pudessem ser o mesmo livro. Ele pensou um pouco, talvez não querendo dar o braço a torcer, e disse "o mais barato", já que eram o mesmo livro. Ela novamente refutou com velocidade:

— Mais barato quanto? Dez centavos? Você compraria essa edição simples e sem atrativos por dez centavos de diferença ou ficaria com a versão em capa dura?

Ele bronqueou um pouco e disse que não, que, por uma diferença tão pequena, ficaria com a versão em capa dura. Ela perguntou por que, e ele falou que era óbvio, que era uma versão de melhor qualidade e valia o preço. Ela perguntou quanto mais barato teria que ser o exemplar simples e sem atrativos para que ele o escolhesse ao invés do belo exemplar em capa dura. Ele disse que não sabia, que dependia. Por fim, ela perguntou qual desses livros ele colocaria em sua melhor estante, aquela que fica visível para todos os convidados em sua casa. Ele não respondeu. Então, ela concluiu:

— Sabe, a vida não é muito diferente de escolher livros, professor. Esse exemplar em capa dura com excelente diagramação demonstra cuidado, capricho, entrega o que você espera de conteúdo e ainda mais. Nós, como pessoas em uma sociedade, não podemos ficar satisfeitos apenas por termos conteúdo, temos que exteriorizar isso. Corpo e mente estão ligados, e devemos desenvolver os dois sim, nem só um nem só o outro, caso contrário teremos que baixar muito o nosso valor para sermos aceitos de fato.

Ele não concordou e acabou não explicando muito seus motivos, disse apenas que deveria continuar com a aula, e ninguém disse mais nada. Eu queria levantar e aplaudir, talvez a sala toda aplaudisse também, como nas excelentes comédias românticas dos anos noventa. Não que fosse fazer isso, tinha outras coisas na cabeça, precisava melhorar a minha capa. Entendi bem a alegoria do livro, a questão não era apenas a aparência física sobe o conteúdo cerebral, era o conjunto e mais, dizia respeito aos trejeitos sociais, afinal, seres humanos não são criaturas solitárias por natureza, existimos apenas em sociedade e não podemos usar demagogia, habilidades sociais importam, e eu precisava aprender a interagir, além de melhorar um pouco a aparência é claro.

NoahOnde histórias criam vida. Descubra agora