Apóstolo

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— Mas que droga. Pedro, acorda. Pedro! — gritar e sacudir pelos ombros meu paciente que jazia embaixo da cama desacordado são as únicas coisas que consigo pensar em fazer. Ele está respirando, já é alguma coisa. — Pedro, você precisa acordar, Pedro.

Finalmente, os olhos começam a se abrir.

— Consegue me ouvir, Pedro? Você está bem? — pergunto devagar e com calma.

— Doutor? — Pedro diz com o rosto transbordando confusão.

— Calma, amigão. Não tente falar agora, você deve estar com náuseas, eu acordei assim há meia hora — minto, não sei da onde tirei essa estimativa de tempo, sinto que estou ali há, no mínimo, dezoito anos.

— Onde estamos? Que lugar é esse? — Pedro questiona enquanto se esforça para ficar sentado.

— É um apartamento — respondo — O prédio está desocupado, já gritei por ajuda e nada. Pedro, qual a última coisa de que você se lembra?

— Um apartamento onde? Por que estava gritando por ajuda? O que está acontecendo, doutor? — Pedro me fuzila com perguntas que não tenho como responder.

Eu não faço a menor ideia por onde começar a explicar a situação, isso deverá esperar, preciso saber do que Pedro se lembra.

— Calma, Pedro — tento parecer o mais tranquilo possível enquanto falo. — Já vou contar tudo que sei. Antes, você precisa me dizer qual a última coisa que você lembra.

— Não sei direito, doutor — Pedro responde fazendo uma careta. — A sessão, isso, estávamos no grupo de apoio, eu acho, ai. — Antes de terminar a frase, Pedro faz uma pausa. É fácil ler a consternação em seu rosto, sei bem o que ele estava lembrando, sei o que vai dizer a seguir. — Ah, doutor, desculpe por aquilo. Eu não sei o que deu em mim, eu...

— Tudo bem — interrompo. — Em outro momento, falaremos sobre isso. O mais importante agora é você tentar lembrar o que aconteceu depois da briga.

— Não sei, doutor, quer dizer, não consigo lembrar. Como viemos parar aqui? — Pedro pergunta.

— Eu também não consigo lembrar — respondo. — Mas Jacob está do outro lado dessa porta e acho que ele é o responsável por tudo isso.

— Jacob? — Pedro diz, subindo o tom. — O que aquele canalha degenerado está querendo?

— Não consigo imaginar, Pedro. — respondo com sinceridade. — Jacob sempre apresentou traços de psicopatia, mas nunca imaginei que ele fosse um maníaco.

Pedro sacode a cabeça e diz:

— Aquele sujeito é mau, doutor, pode acreditar, perverso até os ossos. O jeito que ele olha pra gente durante o grupo... Sabe, sempre achei que se divertia com nosso sofrimento. A mim, ele nunca enganou.

Eu tenho todos os motivos para concordar com Pedro, contudo, mesmo nesta situação tenebrosa, falar de um paciente com outro parece terrivelmente errado.

— É, acho que subestimei mesmo a extensão do transtorno de Jacob — digo, sentindo-me culpado.

— O que fazemos agora? — pergunta Pedro.

Como eu vou saber? Acordei nesse inferno do mesmo jeito que você e não tenho a menor ideia do que está acontecendo e quais são as intenções de nosso amigo maníaco.

— Nós vamos pensar em alguma coisa — digo fingindo confiança. — Agora somos dois, deve ter alguma coisa que possamos fazer — tento parecer animador.

— É. Assim que esse enjoo passar, vou abrir essa porta e acabar com a raça do cretino.

Conheço Pedro o suficiente para saber que suas palavras não são levianas.

— Calma, você não está pensando direito. Jacob pode estar armado e, quem sabe, pode nem estar sozinho — apelo para o lado racional, não posso deixar que faça uma besteira.

­— Você viu mais alguma pessoa, doutor? — Pedro pergunta.

Na verdade, não vi nem Jacob, ouvi sua voz através da porta do banheiro um pouco depois que pessoas misteriosas apareceram nos quadros da sala. Talvez deva te alertar sobre o tempo também! Sabe, ele anda parando sozinho ultimamente. Isso sem mencionar a porta acorrentada e todas as outras esquisitices que acontecem por aqui.

Melhor não comentar esses detalhes com meu paciente impulsivo, preciso que ele fique calmo para não piorar ainda mais a situação.

— Não vi, mas isso não quer dizer nada — respondo e acrescento: — Ele conseguiu arrastar nós dois até aqui, não é? É uma tarefa bem difícil para uma pessoa sozinha, mesmo um sujeito grande como Jacob teria dificuldade.

— Ele só tem tamanho, doutor, eu acabo com a raça dele, acabo sim — Pedro diz com confiança.

— Pode ser, Pedro, mas o melhor agora é tentar entender a situação — digo, mudando o foco da conversa. — Por que será que ele nos trouxe para esse prédio deserto? Se fosse para simplesmente nos matar, já podia ter feito isso há bastante tempo.

— Não sei, doutor — Pedro responde. — Será que ele quer dinheiro? Minha família é rica, você sabe.

Acho muito difícil a situação toda se tratar de um simples sequestro com fins monetários por dois motivos. Primeiro, não estamos amarrados e temos total liberdade de transitar pelos cômodos. Segundo, o sequestrador, Jacob, está trancado conosco no apartamento. Tudo indica que estamos no meio de um jogo macabro orquestrado por um psicopata com complexo de deus.

— Isso é uma possibilidade, Pedro — digo, acenando a cabeça. — Minha família também é rica, sabia? Jacob sempre foi ambicioso, deve estar querendo o nosso dinheiro — preciso concordar com a teoria do sequestro por dinheiro, tenho que manter uma linha de raciocínio que Pedro pudesse aceitar sem se descontrolar.

— Se ele quiser só dinheiro, não vai ter problema — disse Pedro. — Você sabe, minha família daria até o último centavo pra me ter de volta. A sua deve ser igual, não é?

A afirmação soa tão absurda que não consegui segurar uma risada estridente que saiu da minha boca, parecendo o berro de uma gralha.

— Doutor? — Pedro me olha confuso. Claro que ele não entende a minha reação. Como poderia?

— Desculpe — digo após estrangular o riso. — Se você conhecesse minha família, entenderia. Eles achariam ótimo se eu sumisse do mapa sem deixar vestígio.

— Isso não é possível, doutor — Pedro diz inconformado. — Você sabe, não é? Os pais sempre amam seus filhos.

Não, jovem gafanhoto. O mundo não é um grande arco-íris, é um lugar sujo, é um lugar cruel. As famílias não são como a Disney mostra, são apenas pessoas, e pessoas amam e odeiam com a mesma intensidade.

— Exatamente por isso, Pedro — digo, evitando discordar muito. — Amam tantos os filhos que não conseguem aceitar um que se tornou um fracasso antes mesmo de nascer.

— Isso não faz sentido, doutor. Como alguém pode fracassar antes de nascer? — Pedro pergunta com sincera curiosidade.

Como a conversa foi parar ali? Sinto-me traído pelo próprio inconsciente. Na ânsia de afastar Pedro de pensamentos que pudessem estimular sua impulsividade, acabo voltando para areias muito antigas. Poucas foram as vezes que compartilhei aquela história; mesmo com Irene, levou algum tempo para explicar o porquê de não ser uma boa ideia ela conhecer os sogros. No entanto, sinto agora uma vontade, não, vontade não, necessidade de compartilhar aquela história com Pedro.

Devo estar mesmo enlouquecendo. Contudo, se desviar do assunto agora, só vou conseguir deixar meu paciente inseguro, talvez até violento. Então, pergunto:

— Pedro, o que você sabe sobre leucemia?

NoahOnde histórias criam vida. Descubra agora