EPÍLOGO

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     Sara não gostava de hospitais, mas odiava ainda mais asilos. Não porque tinha algo contra idosos, mas porque se sentia culpada. Culpada por não conseguir cuidar do pai ou do avô — dois que viraram hóspedes da Casa de Repouso Recanto do Sol quando ficaram velhos e incapazes de fazer qualquer coisa por conta própria. Sara tentava, mas quase nunca estava presente. A culpa certamente era da turnê que fizera pela América quando precisou promover seu novo livro.

     Naquela tarde quente, quando andou pelo corredor iluminado de acesso aos quartos em horário de visita, encontrou a enfermeira que geralmente cuidava de seu pai andando e a parou para perguntar como ele estava. Queria saber antes de entrar, afinal os homens de sua família não eram conhecidos pelo bom humor em dias quentes.

     — Ele parece ótimo — disse a enfermeira, Diana — Acordou animado para dar uma volta no jardim, mas ainda não conseguimos uma cadeira de rodas que ele não tenha odiado.

     Diana riu, Sarah praticamente ouviu o esses Whites em tom de desaprovação. Ela era uma mulher quase velha, por volta dos cinquenta e poucos anos, mas não era necessário olhar muito para saber que Diana, quando jovem, com certeza se parecia com um anjo.

     — Obrigada — Sara agradeceu a informação.

     Continuou caminhando pelo corredor. Quando passou pela sala de recreação, viu colegas de seu pai jogando xadrez. De vez em quando Sara sentava com eles e contava histórias — a maior parte de seus livros — para distraí-los do tédio. Eles adoravam, principalmente porque ela era jovem e paciente e eles quase nunca recebiam aquele tipo de atenção. Sara se sentia bem com eles.

     Quando ela chegou ao quarto, bateu levemente na porta fechada.

     — Oi? Está acordado?

     Com o feixe de luz escapando do corredor e entrando no quarto, Thomas White desviou os olhos da TV para a porta. Sara sorriu para ele. Parecia cansado, mas ultimamente era tudo o que ela via nele: cansaço. Uma característica distante da imagem do detetive ágil que a mulher costumava ver em ação durante sua infância, adolescência e parte da fase adulta. Naquele momento da vida, sua essência policial se fora e ele era apenas Thomas White, o detetive aposentado, pai de Sara Crawford White, a famosa escritora de livros de terror.

     — Estou sempre acordado para você, querida — soou sua voz calejada.

     Sara se aproximou, sentando na poltrona ao lado da cama. O pai a acompanhava em cada movimento, feliz de vê-la por ali; Sara não tinha tempo de visitá-lo sempre e o homem adorava ouvir quando a filha contava sobre suas aventuras no mundo da escrita. As viagens que ela fazia, as pessoas que conhecia... Por mais honrado que tivesse ficado quando Sara pediu para usar casos de sua carreira como inspiração para Os Sete Psicopatas, ele preferia quando a neta vivia experiências novas. Assim sempre voltava para contar tudo a ele.

     — Como vai a sua perna? — Sara perguntou. Desde que ele caíra durante um infarto, não conseguia andar sem mancar. Uma fratura, talvez. Mas ela suspeitava que era algo relacionado a idade.

     — Vai bem.

     — E a casa? Está gostando dela? Sabe que podemos te levar para sua casa de verdade a qualquer momento, não sabe?

     Com o dinheiro que ganhara escrevendo livros, Sara podia bancar atendimento a domicilio. Não queria seu pai em um asilo qualquer e foi a primeira a discordar da ideia, mas ele havia insistido tanto e era tão orgulhoso que acabou se juntando ao seu pai, já falecido, nos corredores do Recanto do Sol. Ele parecia confortável ali.

     — Meu maior pesadelo sempre foi dar trabalho a alguém — ele retrucou — Gosto daqui, foi um bom lugar para o meu pai em seus últimos anos e tenho certeza de que será para mim. — Parou por um segundo, suspirou e continuou em tom nostálgico: — Eu me lembro, Sara, de assim como você sempre vir visitá-lo. Gostava de trazer os enigmas dos meus casos para que ele ajudasse a desvendá-los porque, sabe, seu avô era um White, e esse nome sempre está por traz de uma perigosa paixão por enigmas.

     Sara sorriu. Lembrava de seu avô, mesmo que pouco. Era detetive como o seu pai e como o avô dele. Sara foi a que quebrou a tradição da família, mas não importava: sua irmã, Serena, havia seguido o rumo de detetive e não deixaria que o legado morresse.

     — Acho que nasci com defeito, então — riu Sara. O nome White sempre andou ao lado de grandes figuras policiais, mas ela era apenas uma escritora.

     — Na verdade, querida, você só enfrenta mistérios de maneira diferente. Não te faz menos White.

     Sara pensou em Raymond. Pensou em como o deixou para morrer em Nothern Lake, dentro do instituto. Um instituo que havia saído da vida real, como uma breve homenagem à imagem da falecida tia, que passara muito tempo em Ryan. Agora, Raymond estava com ela, no instituto, e seu destino, sua morte e sua inexplicável vinda ao mundo real permaneciam um mistério.

     Thomás tinha razão, afinal. Sara carregava o legado dos White, mas no lado sobrenatural que nunca poderia explicar ou falar a respeito. Talvez com seu avô, que deixara de ser cético após um caso envolvendo origem sobrenatural na França, mas ele estava morto. Teria que manter segredo.

     — Você terminou, querida? — Thomás perguntou.

     Sara piscou como se acordasse de um sonho. Ele perguntava da versão alternativa do livro. Desde que Raymond e as outra sete morreram e voltaram para o universo de Os Sete Psicopatas, um ano antes, ela trabalhava em uma maneira de mudar o final da história. Trocou coisas do enredo para voltar a publicá-la de um jeito que não causasse tantos problemas caso algo do gênero voltasse a acontecer, mas teve dificuldades com o fim. Não sabia como livrar o enredo daquele incêndio, nem Raymond de sua morte. Ela queria salvar o escritor e fazê-lo ver que não deveria ajudar as Psicopatas. Demorou muito para que um final digno passasse por sua cabeça, mas ela achou algo.

     — Eu consegui — disse ela, sorrindo. — Raymond deixa as psicopatas morrerem no incêndio e foge com Diana do instituto. Eles pegam um navio para longe, ambos querendo morar no litoral, longe de florestas e do frio.

     Thomás pareceu surpreso.

     — Feliz assim? Não parece o seu gênero.

     — Na minha cabeça, o navio afunda e Raymond sobrevive, mas Diana morre. Em compensação, ele salva a vida de uma mulher desconhecida, e ela lhe diz que, muitas vezes, algumas coisas não podem ser escritas. Elas têm que ser pensadas.

     Não fazia sentido, ela sabia, mas em diversas noites, quando acordava tendo pesadelos ou pensando que as psicopatas haviam voltado para acabar com a sua paz, ela sentia a água gelada do mar entre seus dedos. Sentia- se levitando no meio do caos, onde sempre seria mais confortável, e via seu pior personagem a salvando em sua maior rendição, sendo o bom homem que ela queria que ele fosse e seguindo os conselhos preciosos de uma mulher misteriosa que, dentro do mar, no meio de destroços de um navio ainda em chamas, lhe dizia para nunca confiar nas sombras.

      Era o jeito dela de garantir a ele e ao seu subconsciente que tudo ficaria bem. Elas nunca venceriam. 

FIM 

7 Psicopatas (COMPLETA ATÉ DIA 25/11)Onde histórias criam vida. Descubra agora