Companhia

6K 597 164
                                        

Rodei alguns metros do esgoto de Ruston tentando achar algo para passar o tempo. Já havia me alimentado e precisava de uma distração, não é muito divertido morar num esgoto mas as vezes caem coisas legais aqui. Andei pelas passagens até achar um livro boiando perto das grades enferrujadas e decidi leva-lo comigo. Cheguei ao lugar onde eu considerava meu lar, a pilha enorme de brinquedos, e tentei ler. Eu gostava de livros, apesar de não saber muito da gramática do século vinte e um, eu me esforçava e, aos poucos, conseguia aprender algo. Me sentei em um lugar qualquer e abri o livro encharcado de água suja. Estava meio ilegível mas dava para ler algumas parte... Ah, uma vida resumida em livros molhados, fedorentos e com as letras borradas... Queria muito sair e ir para o que os humanos chamam de 'biblioteca', onde ficam vários livros. Depois de uns minutinhos tentando ler as páginas enrugadas e grudentas, ouço de longe, o chacoalhar da água, como se alguem estivesse andando nela, se aproximando. Mas não eram passos pesados, eram delicados e cuidadosos. Andei até o início da passagem, tentando ouvir alguma conversa, mas nada. Preparei o meu melhor sorriso maligno e a minhas várias fileiras de dentes afiados para dilacerar a carne do humano que se aproximava. Até que uma voz doce e feminina ecoou pelas paredes do esgoto:

-" Pennywise! Onde você está? Sou eu, Melissa"- M-melissa? Corri até onde a garota estava, presumindo que ela estava perdida pelas várias passagens de esgoto que Ruston tem. Como conhecia esse lugar como a palma da minha mão, consegui achá-la com facilidade:

-" Melissa... O que faz aqui?"- perguntei.

-" Eu disse que iria voltar, não disse?"- falou com um sorriso no rosto-" Aqui, eu trouxe para você..."- a garota abriu a mochila que carregava consigo e retirou algo de textura vermelho e branco listrado de dentro. Era um saquinho de pipoca. O cheiro estava exalando e a fumaça que indicava que estava quente subia-" Passei numa barraquinha de pipoca e comprei para mim e para você"

-" Ah... o-obrigado..."- vocês não fazem ideia do quão difícil é essa palavra para mim.-"

-" Nar, não foi nada."- decidi leva-la até a minha pilha de brinquedos, então pedi que me seguisse.-" Então, o que você estava fazendo antes de eu chegar?"

-" Eu? Nada de mais, só tentando ler um livro velho que eu achei"

-" Então você gosta de ler?!"- disse com uma certa animação.

-" Er... eu gosto"- cocei a nuca sem graça-" Apesar de eu não poder sair para comprar novos. Eu pego os que caem aqui ou que eu vejo boiando por aí"

-" Ah é uma pena. Olha, eu também adoro ler, eu posso trazer alguns para você depois"

-" Jura?"- disse animado-" se não for incomodar..."

-" Claro que não! Da proxima vez que eu vier eu trago, ok?"- acenti com a cabeça. Nos encostamos na pilha de brinquedos e comemos nossas pipocas.-" Então, como é morar aqui?"

-" Nar, não é tão emocionante quanto você pensa. Faz muito frio a noite e, as vezes, é muito silencioso. Tem vezes que eu não consigo ficar parado aqui, tenho que andar e fazer alguma coisa"

-" E onde você dorme?"- balancei a cabeça piscando algumas vezes.

-" Eu...não durmo"- a garota parou de comer com a minha resposta.

-" Como assim não dorme?!"

-" Eu simplesmente não consigo, é isso"- Melissa parecia pensar na possibilidade de isso ser possível. Eu não iria contar para ela que sou um ser imortal que vaga por essa terra por muitos e muitos anos. Ela poderia não entender ou até mesmo não acreditar então não valia apena, deixarei ela usar a imaginação.

-" Hum, já que você 'não dorme', o que você faz à noite?"

-" Às vezes eu saio na rua porque eu sei que a maioria dos humanos estão dormindo, outras vezes eu só vou na pedreira aqui perto e fico olhando para o céu..."- percebi que a garota me olhava com os olhos mais brilhantes. Acho que ela gosta de me ouvir falar.-" Não acha que já falamos de mais de mim?"- ela riu. Ah, quanto tempo eu não ouço uma risada sincera, era algo que eu nem lembrava mais:

-"É, ok, eu vou falar um pouco de mim... Bem, meu nome é Melissa Andrew, eu moro com a minha mãe Emma e com o meu cachorro Darwin. Eu gosto de ler e de tocar ukulele no meu tempo livre. Sou politeísta, acredito em vários deuses de várias mitologias. Tenho três melhores amigas, Diane, Katy e Lucille... Ah, e eu odeio as pessoas"- confesso que isso me fez rir um pouquinho.-" Quer dizer, não todas"

-" Por que? As pessoas são traiçoeiras!"

-" Porque eu acredito que todos merecem uma segunda chance, se querem realmente mudar. Não são todas as pessoas que parecem ruins que são. Hoje em dia, muitos julgam sem antes conhecer, sem antes saber os motivos da pessoa e acabam reprimindo-o de tudo, entende.-" Essa garota é mais inteligente do que eu pensava-" É isso o que eu tenho para dizer, não sou boa com explicações" -algo pulsava dentro do meu peito, algo que não pulsava há muito tempo. Eu não consigo entender, metade de mim diz que ela deve ir embora e não voltar mais e a outra diz que eu devo mantê-la perto. A diferença é que a que diz que ela deve ir está sussurrando no meu ouvido e a que diz que ela deve ficar está praticamente berrando escandalosamente, me deixando surdo:

-" Eu lembro que você me disse que era um 'palhaço dançarino' não é? Você é bom em dança?"- disse a garota me tirando dos meus pensamentos.

-" Ah, é, n-não, esse foi só um nome bobo que me deram..."

-" Então eu vou te ensinar a dançar. Vem"- ela me puxou pelo braço, me levando até o centro do lugar-" Aqui, eu tenho o meu celular com muitas músicas... vamos começar por... Little Mix- Touch"- a música tinha um ritmo simples e calmo no começo mas ia ficando mais animado conforme passava. Melissa se movimentava conforme o ritmo da música, seus pés se moviam com facilidade e seus braços se deixavam se levar por movimentos simples. Por algum motivo, depois de alguns minutos a observando, eu estupidamente tentava imitar seus movimentos e, toda vez ela via, ela sorria:

-" Não é tão complicado assim, vai. Nada que um pouco de prática não resolva."- ela me puxou para o seu lado- Você só precisa deixar a música te levar, sentir as batidas... Não olhe para os pés, apenas se entregue para a música!"- fiquei um bom tempo alí praticando até pegar o jeito e começarmos a criar coreografias. Eu diria que foi algo bom, eu me senti bem e, por um instante, me fez esquecer de tudo que eu já fiz e já vi. Ficamos cansados e paramos um pouco, logo, ela se lembrou de algo que a fez assustar:

-" Ai, nossa, eu prometi para a minha mãe que não demoraria. Eu preciso ir rápido"- disse recolhendo suas coisas-" Aqui, pode ficar com o resto da minha pipoca"- eu precisava perguntar uma coisa mas meu lado ruim não deixava:-"Não posso prometer que vou vir todos os dias, okay? Minha mãe é muito rígida quanto aos dias que eu posso sair. Ela pode desconfiar"- disse segurando a minha mão. Apenas concordei. Ela, mais uma vez, me abraçou com os seus delicados braços que davam a volta em mim facilmente. Eu não a toquei e nem a abracei de volta, eu só... deixei.-" Hoje foi muito divertido, prometo trazer outras coisas na próxima vez que vier, okay? Tchau"- a garota foi em direção a passagem e eu precisava pergunta-la algo. Eu queria, mas um nó se formou na minha garganta. Tive que engoli-lo de uma vez:

-" S-se você quiser voltar..."- Melissa parou-"... vai ter um balão vermelho nas paredes pichadas. É só encostar nele e ele vai ter mostrar o caminho até aqui sem eu precisar te buscar toda vez"- bem, não foi uma pergunta mas foi parecido com o que eu quis perguntar. Ela se virou e sorriu gratificada:

-" Certo, vou lembrar disso"- e assim seguiu seu caminho para à saída. Não sei nem o que sentir, não sei se fez bem para mim, não sei se estou sendo idiota de confiar numa humana, eu não estou sabendo lidar com nada. Só sei que...foi uma sensação diferente de tudo que eu já senti. Aquilo está pulsando novamente muito forte no meu peito e agora eu posso ouvi-lo nesse vasto silêncio que toma o lugar, acho que vou ter um troço.

Clown sweet clownOnde histórias criam vida. Descubra agora